Fim de Semana

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Eram pouco mais que oito horas da manhã, quando Cornélia entrou no quarto e colocou o focinho na minha cara, forma de me dar bom-dia. Na interpretação canina: "- Salta fora logo desta cama e vamos descer que estou me mijando."
Meu apartamento é pequeno. Dois quartos apenas.  Transformei o segundo quarto em escritório. Uma mesa e cadeira que comprei na Tok Stock, que eu mesmo montei, fazem parte do cenário. Uma poltrona e um tapete de sisal completam o cenário. Montar a mesa deu trabalho, mas valeu pena. Conheço cada um dos parafusos. Quando ela fica bamba, vou lá e os aperto e ela fica mais firme que marinheiro depois de três meses embarcado. Há estandes de três andares, também  da Tok-Stock, repleta de livros que cobrem as paredes do quarto. Não há quadros. Tentei organizar os livros dentro de uma lógica, mas é difícil. Para manter uma facilidade de encontrar exemplares,  fiz três grupos: livros de história/filosofia; livros de engenharia em geral - preciso deles para encontrar termos técnicos adequados para minhas descrições de patentes; e por fim romances/thrillers em geral.
O quarto principal tem uma cama de casal, um móvel com uma televisão que pouco uso e um armário bagunçado. Cornélia dorme junto ao pé de minha cama.  No inverno pula para cima. Dá duas ou  três volta, como se procurando a melhor posição e deita-se. Seu peso fica todo em meus pés. Entre eu e ela, um edredom leve, velho e amarelado. É um edredom de pena de ganso autêntico. Foi presente da Joice, uma antiga namorada. Ela comprou em Gramado, na Serra Gaúcha e pagou caro. Quando terminamos, ofereci-me para devolver. Ela disse que presente não se devolve. Não tenho certeza se isto - devolver o presente - é de bom tom ou é indelicado. Bem,  pelo sim, pelo não, fiquei com ele. Mesmo que o amarelado denucie o pouco tempo que resta até a aposentadoria, dá para dizer que serve muito no inverno. Depois de ter ganho o edredom, aprendi que presente bom é presente útil. Nunca, em momento algum da minha existência, acordei de manhã e pensei: hoje vou sair de casa e comprar um edredom. Presente útil é tudo aquilo que você nunca desejou, mas depois que ganha, não sabe como vivia sem. Não é qualquer namorada que tem este dom. A Joice tinha. Seu atual marido deve estar se locupletando com esta qualidade. 
Enquanto calçava meus tênis Adidas falso para o passeio matinal com a Cornélia, tracei mentalmente o perfil da Joice. Uma menina meiga, mas muito ciumenta. Tinha os pais separados desde cedo, mas grana nunca foi problema.  Tanto a mãe, quanto o pai, ambos ricos, competiam entre si para ver que dava mais presentes e mimos. Mas não era isto que ela queria. Tinha carências afetivas profundas. E compensava em min, ou pelo menos tentava. Como prova de amor - ou de insegurança - entregou sua virgindade. E eu, em retribuição, entreguei a minha experiência, e tenho certeza que não decepcionei. Quando fez 18, ganhou um carro, raridade na época para meninos. Para meninas não havia esta opção, exceto para a Joice.
No ano passado, instalei um ar condicionado no quarto. Um luxo para minha conta bancária e um desastre na conta de luz mensal. Mas valeu a pena. Tanto eu quanto Cornélia não temos queixa. Dormimos o ano inteiro com o ar condicionado ligado a uma temperatura que nos permite dormir, eu por baixo e ela por cima do edredom.
Meu plano era passear no máximo 15 minutos com Cornélia, suficiente para concluir suas necessidades fisiológicas e voltar. Tudo estava certo, até encontrar a vizinha do segundo andar, fundos, onde o sol não batia mesmo que fizesse uma curva de  noventa graus. Ela devia ter 70 e muitos. Era renga de uma perna, mas fazia a feira sozinha.
- Seu Roni, o Sr. me salvou outro dia - Me falou querendo puxar  assunto.
- É verdade? Não lembro como foi.
Lembrava que a encontrei presa pelo lado de fora do prédio.
Foi um sábado que ela havia esquecido a chave em seu apartamento.  Tivemos que chamar um chaveiro e eu perdi minha folga ensolarada correndo atrás de um. Recordo que ele cobrou caro e Dna. Alzira ficou muito puta comigo. Ajudei, perdi meu sábado e ainda me ferrei.
- O Sr., Seu Roni, me ajudou muito. Quando vim do inteiror, depois que viuvei, estranhei o povo local - começando a conter a mesma história de sempre. A Cornélia já contava esta história melhor que ela de tento ouvir.
- Cornélia, sai daí! - falei tarde. O estrago já estava feito. Dna Alzira ainda levou um tempo pra realizar.
- Cadela sem-vergonha! - excomungou a velha. E saiu batendo os pés, pare ver diminuía o volume expelido.
Conforme planejado e descontando o tempo de conversa com a Dna Alzira, em quinze minutos estávamos de volta e Cornélia foi deitar embaixo de minha mesa no quarto pequeno, local predileto dela digerir a ração após o almoço enquanto eu trabalho.

Alguém tem que trabalhar...

À tarde saí para passear nos supermercados e tentar localizar  algo semelhante ao invento do Sr. Caco Tavares. Não encontrei. Tinha dificuldade em explicar para os atendentes sem expor de mais o conceito e correr o risco de alguém ouvir e mais tarde alegar que a ideia era de domínio público. Neste ramo de patentes, todo telhado é de vidro.
O máximo que encontrei do tipo 2 em 1 foi uma panela para fazer massa e escoar água tudo integrado em um só produto, toda em inox reluzente. Um belo objeto.
Comprei.
Mais tarde, no "Café Hernesto", mais velho que o próprio bairro, bebendo um pretinho fraco e devorando um baguete de presunto (pouco); queijo (velho) e manteiga (nenhuma), refleti sobre minha compra. Não sei se vou usar. Mas ficaria charmoso na minha cozinha. Pensando bem, nem charmoso ficaria naquela bagunça úmida e escura. Decidi, então, levar aquele 2 em 1 para o escritório na segunda-feira pela manhã. No final do expediente irei ao super abastecer a geladeira. Aproveito e troco por ração da Cornélia.
Quando me dei conta, eram oito horas. Paguei meu café com baguete e sai apressado. Mesmo assim, deu tempo de ler a placa atrás do caixa: 

"Café Hernesto: Na cidade, mais honesto, não há!
Se quiser algo melhor, volte para casa da mamãe!" .

Não tinha como reclamar ou não gostar daquele lugar.
Fui para casa, liguei a tv do quarto e Cornélia foi se chegando. Por fim, éramos eu, ela e o edredon, presente da ex-namorada. No pensamento, uma vontade de companhia feminina e um bom Carbenet necessariamente nesta ordem.

Adormeci com a tv ligada e a Cornélia sonhando com as quatro patas para cima.

O Domingo foi um daqueles que se perde na memória rapidamente, pois não aconteceu nada de especial, fora a chuva e a melancolia que todo o domingo chuvoso carrega consigo.

O Caso 2 em 1Onde histórias criam vida. Descubra agora