Capítulo 1

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Capítulo 1
“Chorar sobre as desgraças passadas é a maneira mais segura de atrair outras.” William Shakespeare
Charlotte — Você não precisa fazer isso.
Thomas falava sem cansar, mas eu, sinceramente, não conseguia ouvir metade do que ele dizia. Sentada
no alto do edifício eu apenas olhava para baixo. A escuridão da madrugada que nos escondia de olhares
curiosos, também servia para disfarçar a minha apreensão. Lá embaixo poucas pessoas caminhavam, no
geral grupos de jovens a caminho de alguma balada, ou um casal apaixonado que, acreditando não ser
observado, revelava o seu desejo em paredes frias e sujas. Dei mais um gole na garrafa de tequila que
estava em minha mão.
— Sério, Charlotte! Não vê que nada disso é necessário?
— É trabalho, Thomas. — Ele riu sem vontade, apenas para desdenhar da desculpa esfarrapada que eu
usava para me manter firme na minha decisão.
— Não quando seu trabalho envolve Alex Frankli. — Encolhi-me visivelmente à mínima menção a ele.
Não, não havia passado. Três anos depois e eu ainda me sentia apunhalada todas as vezes que alguém
citava o nome do meu ex-marido. Normalmente eu fingia não me importar. Ninguém mais me via chorar
ou lamentar o fim. Eu sorria, brincava, saía com amigos, fingia levar uma vida normal, com barreiras
muito bem construídas para impedir que as lembranças me alcançassem.
No entanto, eu, e apenas eu, sabia o que existia dentro de mim, e por mais que a ferida não estivesse mais
sangrando, ainda a sentia, e sofria. Uma parte porque nunca me dei a oportunidade de encerrar aquele
capítulo adequadamente, como deveria ser. Simplesmente fui embora e nunca mais voltei. Sequer falei
alguma vez com ele. Neguei-me até mesmo a falar sobre ele com qualquer pessoa disposta a consertar os
nossos erros. Agia como se Alex tivesse sido apagado da minha vida, apesar de saber que era um erro.
Uma ferida abafada nunca cicatriza.
Outra parte porque, por mais que o odiasse, eu o amava na mesma medida e com a mesma intensidade. E
por mais que escondesse de todos a verdade, nenhum tempo, nenhum lábio, nem braços, conseguiram
amenizar o que eu sentia. Nem para o bem, nem para o mal. Então eu seguia, amando e odiando, sem
nunca saber qual dos dois sentimentos seria vencedor um dia.
— Meu público no Brasil é imenso. É até desrespeitoso nunca ter voltado, principalmente porque devo
parte do meu sucesso a eles.
— Eles quem? Ao público ou à editora do Alex? — Outra vez meu coração acelerou e a ferida ardeu.
Thomas tinha este jeito. Ele falava sem medidas. Não colocava panos quentes. Acreditava que não fingir
nem esconder era a melhor forma de tratar uma alma sofrida. Deu muito certo quando o assunto era a
minha mãe, porém tornou-se doloroso demais quando se tratava de Alex. Provavelmente porque aprimeira estava morta e nada nem ninguém conseguiria mudar a situação, já Alex… — Os dois. Devo
muito à editora, à Lana… — À Alex… — Pegou a garrafa da minha mão e tomou um gole longo.
— Sim, a ele também — rebati, sem conseguir encará-lo. — Bem ou mal tudo começou a acontecer por
causa dele. Não, Thomas… — Levantei a mão para impedi-lo de falar. — Eu sei muito bem o que você
pensa. Aconteceria de uma forma ou de outra, eu sei. Você nunca vai entender a importância dele neste
caminho. Se… — Engoli em seco. — Se Alex não tivesse acreditado em mim, muito provavelmente eu
apostaria apenas em uma autopublicação com pequena tiragem, simplesmente porque não tinha coragem o
suficiente para fazer sozinha. E você já argumentou bastante comigo.
— Mas não consegui te convencer a ficar. — Empurrou-me com o ombro.
Só Thomas para não entender que me empurrar com o ombro no alto de um edifício, quando eu já tinha
bebido tequila suficiente para me considerar suicida, era mais do que errado.
— Eu estou sempre viajando a trabalho e você nunca reclamou tanto.
— Porque desta vez é realmente arriscado.
— Arriscado?
— Sim. Desta vez você vai estar com ele. — Jogou as mãos para cima como se estivesse dizendo o
óbvio. E estava. Tive que rir. — Não consegue enxergar o perigo? Nos últimos três anos você esteve em
diversos lugares do mundo. Assinou vários contratos, participou de inúmeras sessões de autógrafo, deu
infinitas entrevistas e entrou para a lista de best-sellers. Em nenhum destes acontecimentos ele esteve
presente. Vocês não se encontraram nem mesmo para o divórcio.
— Nós sabíamos que uma hora aconteceria. — No entanto nem eu mesma queria pensar nisso. Me
aterrorizava saber que o encontro estava tão perto.
— E é incrível como você nada faz para se preservar. — Ele levantou sem se afastar, ficou de pé,
olhando para baixo. — Não tem medo de como será este encontro?
— Lamentar uma dor passada no presente é criar outra dor e sofrer novamente — falei baixinho,
pensando no quanto eu acreditava naquela frase e, mesmo assim, continuava deixando que a dor antiga me
machucasse.
— Deixe-me adivinhar: Shakespeare.
— Sempre — suspirei.
Shakespeare era a minha obsessão, como era também a de Alex, o que se tornou algo nosso. Eu nunca
consegui fazer ele voltar a ser só meu, como era antes de tudo acontecer. — Acho melhor irmos para
casa. — Levantei com auxílio dos braços do meu amigo. A tequila cobrava a nossa brincadeira.
— Poderíamos passar lá no… — Não, Thomas — ri sem deixá-lo terminar a frase. Se dependesse de
Thomas só voltaríamos quando o sol nascesse. — Tenho que viajar pela manhã bem cedo, nada mais de aventuras, nem de tequila. — Recusei a garrafa que ele me oferecia e tirei o pó do meu jeans. — Tenho
mesmo que ir.
— Não tem nada que eu possa fazer para te convencer a desistir?
— Não.
— Ok! Estarei aqui para juntar seus cacos quando você voltar.
Suspirei pesadamente e iniciei a nossa decida. Em algumas horas eu estaria enfrentando o meu pior
pesadelo: encarar Alex Frankli, e para tanto precisaria equilibrar a minha mente, assegurar meus
pensamentos e trancafiar meus sentimentos.
Não seria nada fácil.
Alex Sentei na prancha observando a faixa de areia diante de mim. O mar estava calmo, mas meu coração
não.
Quando a situação apertava, eu me refugiava na praia, mesmo com a desculpa de que era mais um
momento em família. Era na água que eu me permitia chorar sem ser notado, sofrer sem precisar culpar
ninguém.
Três anos se passaram e quantas coisas aconteceram até eu chegar ali, na praia, encarando atentamente a
areia, vendo de longe meu filho, Felipe, ou Lipe, como Lana o chamava e ele adorava. Nunca imaginei
que minha vida mudaria tanto, nem que daria tantas voltas.
Todos os meus conceitos foram errados, todas as minhas ideias rolaram por água abaixo porque, no
instante em que peguei aquele menino nos braços, que encarei seus olhos azuis e cabelos negros, lisos,
assim como os meus, o eixo do meu mundo mudou.
Tudo o que aconteceu antes e depois disso só serviu para me fazer amá-lo e protegê-lo ainda mais. Em
meu coração habitava a tristeza por todos os passos que demos até ali, a saudade de tudo o que perdi, que
sabia que jamais voltaria a fazer parte da minha vida, no entanto, nada me faria desistir dele, muito
menos lamentar a sua existência.
Naquela data eu me permitia sentir os três anos em que ela partiu. Os três anos em que só a vi de longe,
muito longe, acompanhando o seu sucesso como escritora, vivendo tudo o que sonhamos juntos.
Charlotte foi embora do Brasil e nunca mais voltou. Eu sabia que ela tinha esse direito, que precisava
realmente recomeçar, tirar-me do seu caminho, só não conseguia conter a tristeza com cada notícia que
chegava. Eu assistia as suas entrevistas, acompanhava a sua agenda, afinal de contas ela ainda fazia parte
do nosso quadro de escritores.
Com dois livros lançados e na iminência do terceiro, ela já era um fenômeno mundial. Depois de sofrer a
sua maior desilusão, que foi o nosso casamento, sobre o qual ela nunca falava, ela finalmente se permitiu
usufruir um pouco de toda influência que seu sobrenome lhe permitia. Assim, seu livro ganhou o mundo e,
em menos de um ano, nós éramos somente a editora que representava Charlotte Middleton no Brasil apesar de termos participação nos seus lançamentos fora do país.
Lana era a única e exclusiva responsável pela carreira da minha ex-esposa. Exigência de Charlotte,
aceita prontamente por mim. Nunca nos falamos, nos vimos ou trabalhamos juntos depois que ela foi
embora. Miranda tornou-se a sua agente, mesmo não fazendo ideia do que estava fazendo. Esta, por sinal,
passou a morar com Patrício e, apesar de precisar sempre viajar para acompanhar Charlotte, conseguia
fazer o relacionamento dar certo. Ele nunca descobriu o motivo de eu implicar tanto com ela, e, com fé
em Deus, nunca descobriria. Depois de Felipe o nosso convívio ficou mais amigável, o que eu nunca
cheguei a cogitar, devido aos fatores.
Quanto ao meu livro, desisti dele quando entendi que jamais conseguiria concluir aquela história, mas
também quando descobri que minha irmã estava grávida de gêmeos e que a sua gravidez era de risco, ou
seja, eu precisava estar de volta ao trabalho por tempo integral.
Lógico que não a retirei do cargo de editora-chefe, mas assumi muito mais tarefas do que o meu cargo
deveria, tudo para aliviar o peso das costas dela. Também não posso mentir que trabalhar intensamente,
naquela época, era tudo o que eu mais precisava.
Minha vida tinha virado um inferno.
Trabalhei mais do que poderia suportar, fui forte e Lana conseguiu superar os primeiros meses. O
trabalho me ajudava a me manter longe de tudo, com a mente ocupada, seguindo dia após dia.
Desisti de aguardar por ondas e de me lamentar pela falta que ainda sentia de Charlotte, nadei até a
ponta, retirando a prancha até a areia. Felipe me viu de longe e correu em minha direção, seguido de
perto por Anita. Ela sempre nos acompanhava em nossos passeios à praia.
— Papai — ele gritou antes de se chocar contra as minha pernas.
Abaixei sorrindo, como sempre fazia quando ele se aproximava, peguei ele no colo, levantando-o. Beijei
seu rosto, sabendo que ele detestava ficar molhado. Sua mãozinha segurou meu pescoço me afastando. Os
óculos molhados, incomodando-o.
— Para, papai. — E se debateu para que o largasse. — Molhou tudo. — Tirou os óculos passando para
Anita que rapidamente limpou, devolvendo-o. — Quelo sufá! — Tentou se afastar, debatendo-se para eu
colocá-lo no chão.
Ele sempre tentava pegar minhas pranchas na tentativa de conseguir subir nelas como eu fazia. Deitei a
prancha no chão e ele logo sentou nela, fazendo a maior bagunça.
Felipe era uma criança inteligente. Aprendeu a falar as primeiras palavras cedo e rápido. Passou
rapidamente do engatinhar para o correr. Tinha as melhores desculpas para tudo. Infelizmente tinha
algumas limitações, frutos de uma gestação difícil e um nascimento prematuro. Era asmático e míope,
além de ter diversas alergias.
— Sem muito esforço, Lipe. — Anita, sempre muito cuidadosa, já se preocupava. — O mar não está
muito bom hoje — puxou conversa, retirando o cabelo do rosto.Não está, mas eu tinha esperança.
— Lana ligou duas vezes para o seu celular. — Mordi o lábio contendo o aborrecimento.
— Eu já pedi, Anita… — Eu não olhei, tá certo? Lipe pegou para pedir joguinho quando ela estava
ligando, por isso eu sei.
Eu não estava disposto a entrar em mais uma discussão com Anita, afinal de contas, ela me ajudava muito
com meu filho, esteve do meu lado quando toda merda aconteceu e se mantinha firme, fazendo com que
Felipe se sentisse amado e desejado.
Como Lana teve as gêmeas, Valentina e Catarina, um pouco antes de o Felipe nascer, sua ajuda era quase
inexistente, apesar da boa vontade em me atender sempre que precisei de socorro. Anita era o meu maior
reforço, além da minha mãe, claro.
— Vou ligar para Lana depois. Vamos para casa, Lipe?
— Não! — Ele nem me olhou, ficou tentando se equilibrar na prancha, rindo sem parar e ajustando os
óculos. Suspirei.
— Deixa que eu te ajudo com isso, lindinho — Anita se abaixou para cuidar do meu filho, com o mesmo
amor de sempre.
— Então vou sentar um pouco e cuidar das nossas coisas. — Afastei-me deles sob o olhar atento da
madrinha do meu filho.
Sentei na cadeira e olhei para o mar. Foi naquela praia que eu e Charlotte conversamos sobre sexo, a
forma como o homem pensa e a mulher imagina. Ri sozinho. Charlotte era tão absurda que chegava a ser
encantadora. Mordi os lábios e me obriguei a não pensar tanto nela.
Pouco tempo após a sua partida, assinamos o divórcio. Eu quis tomar um porre homérico, mas, desde que
havia transado com Tiffany por causa do álcool, me recusei a beber outra vez. Então me tranquei em casa
e sofri sozinho, depois me atirei em minha vida profissional.
Não me dei ao trabalho de atender a ninguém, nem mesmo a mãe do meu filho, que foi até a minha casa e
insistiu em conseguir a minha atenção. Fiquei no sofá, deitado, encarando a escuridão da casa e me
odiando cada vez mais.
João Pedro e Patrício estavam decididos a me fazer sair da fossa, como se fosse possível, só que João
não podia participar tanto da minha vida, já que Lana precisava cada vez mais dele e Patrício, apesar de
ir em minha casa quase todos os dias, sentia-se mal por estar com Miranda, uma pessoa tão ligada a
Charlotte, e não poder me contar nada. Mal entendia ele que eu sabia tudo o que precisava.
Tiffany morreu dois dias após o parto. Os médicos tentaram de tudo, no entanto, o que ficou muito claro
para mim foi que a própria Tiffany havia desistido e contra isso não havia procedimento médico que
ajudasse. Eu fiquei sozinho com meu filho recém-nascido, sem nem fazer ideia de como seria criar uma criança. Encarei a situação de frente e, determinado, assumi a paternidade. Desde então tento ser o
melhor possível para Felipe, ser mãe e pai.
Não posso negar que, apesar do amor incondicional que eu sentia pelo meu filho, doar-me integralmente
a ele era também uma forma de ser perdoado pelo mal que fiz a Tiffany. Sim, ela também era um fantasma
do passado que ainda me atormentava. Além de ser uma forma de não pensar em Charlotte, ou de não
sentir tanto a dor que a sua falta me causava.
Muitas vezes eu me pegava pensando em como seria se Lipe fosse nosso filho. Ele era muito parecido
comigo, mas os óculos, e a forma como ele constantemente os ajustava, lembrava-me tanto Charlotte, que
constantemente eu precisava parar para respirar e me recuperar das lembranças.
Mas Felipe não era filho dela. Nunca poderia ser. Nem algo próximo a isso. Ele era o fruto do meu
pecado, o motivo da nossa separação.
Encarei o mar imaginando como seria dali há alguns dias. Depois de três anos em que a imagem da minha
ex-esposa era apenas a de uma celebridade no meio literário, sem nenhum contato, nenhuma palavra, eis
que estaríamos frente a frente. Só de imaginar meu coração acelerava.
Durante dias eu tentei me convencer de que seria horrível. Charlotte me odiava, e eu… bem, eu segui a
minha vida. Aceitei o fim e, apesar de não ter casado novamente, nem ter engatado nenhum
relacionamento mais sério, estava conseguindo seguir em frente, acostumando-me com as lembranças e a
saudade.
Não, eu também não queria um retorno. Desejei isso durante muito tempo, até compreender que ela
jamais aceitaria Lipe, nunca seria capaz de amá-lo, e eu jamais abriria mão dele. Por ninguém.
Então Charlotte e eu erámos um caso encerrado e arquivado. Até eu descobrir que participaríamos do
mesmo evento literário internacional. Um aglomerado de setores conversando e debatendo sobre o
mercado, os livros… Eu participaria representando a editora, e Charlotte foi convidada para algumas
palestras, além de encontro com seus leitores, o que chamava mais atenção para o evento. Então,
estaríamos juntos outra vez. Não no mesmo dia, nem no mesmo horário, porém estaríamos no mesmo
local e o encontro seria inevitável. O mínimo pensamento de como seria já me roubava o ar.
Finalmente teríamos um confronto? Poderíamos colocar uma pedra no assunto após termos a
oportunidade de falar um com o outro? Ou ela simplesmente me ignoraria como fazia há anos? Eu não
fazia a mínima ideia e a incerteza era o que me tornava um fraco. Eu não sabia o que esperar.
Havia também a possibilidade de nem nos encontrarmos, mas, me conhecendo muito bem, eu sabia que
procuraria por ela a cada segundo. E a encontraria.
Olhei meu filho, que ainda se divertia com a prancha. Era melhor não abusar do sol e do vento. Eu bem
sabia como as noites eram quando ele se expunha demais. Levantei, dobrei a toalha, fechei o sombreiro e
a cadeira, arrumei os brinquedos do Lipe, juntei algumas coisas que Anita deixara espalhadas e fui até
eles.
— Vou levando as coisas para o carro. Volto logo para pegar a prancha. — Anita concordou, pegando suasaída de praia da minha mão.
— Eu quelo sufá — Lipe protestou.
— Mais cinco minutos. — Ele fez birra, já sabendo que eu não voltaria atrás.
Peguei tudo e deixei a areia ganhando rapidamente a calçada ampla. Só precisava atravessar a rua e
andar poucos metros até o meu carro. A ciclovia estava vazia, assim como o número de pessoas
caminhando estava bem reduzido. Olhei mais uma vez para trás, certificando-me de que eles ficariam
bem até eu voltar, quando senti a dor forte e ouvi a voz há tempos esquecida.
— Alex!
Ela gritou alto, antes de eu sentir meu corpo ser jogado ao chão. A dor em meu cotovelo foi aguda, assim
como a que senti imediatamente em minha perna, mas nada ganhava mais a minha atenção do que os
poucos minutos que levei para reconhecer aquela voz.
Charlotte estava lá

Prova final Onde histórias criam vida. Descubra agora