Quem escuta, de si ouve
Inquieta a datilógrafa lia a letra asquerosa do chefe e repassava para o papel na máquina sem atenção, lentamente, fazendo pausas. A perna esquerda subia e descia em sinal de nervosismo. Olhava para Dinah do outro lado da sala e via a tranquilidade no jeito de trabalhar da amiga. Havia esquecido o assunto sobre raptadores de corpos, mas na noite anterior, por coincidência, durante o jantar escutara o pai falar sobre uma ação de alguns homens contra a atrocidade que rondava Vincent Malloy e condados vizinhos. Planejavam montar equipes de vigilância e guardas. Sentiam-se violados e temiam o futuro da cidade. Queriam provas de que os exumadores de corpos estavam agindo desenfreadamente. Aconteceu o mesmo quando começaram a caçar traficantes de Ópio.
Eles inventam histórias, pensava Normani. Todos esses homens sempre estão a criar formas de destruir os trabalhos uns dos outros. Não havia exumadores assim como não houveram traficantes de Ópio em Vincent Malloy. Era o que ela repetia para si mesma, tentando não associar exumadores à cova mexida da falecida amiga.
— Sua amiga recebeu demissão por não cumprir adequadamente o trabalho. A senhorita Hamilton desejaria o mesmo?
A voz grotesca trouxe-a de volta.
— Não, senhor — respondeu calmamente. — Me permiti respirar alguns segundos e descansar meus olhos.
— Descanse ao fim do expediente! Se quer mordomia, largue o trabalho e fique em casa. Seu pai não se importaria e muito menos eu.
Normani trincou os dentes e seguiu os passos do alto homem grisalho, seu chefe. Ao vê-lo fechar a porta do gabinete, buscou Dinah com os olhos e a encontrou solicitando calma em leitura labial. Concordou, voltando a se concentrar no trabalho. Palerma e mendaz!, pensou. Conta sobre a demissão de Allyson de forma a expô-la como a responsável. Ela não foi a responsável e Normani possuía imensa convicção.
Por muitas vezes chegou a se perguntar como Dinah conseguia manter a postura ereta na cadeira desconfortável de madeira, o cabelo impecável em um penteado que o mantinha elegantemente preso atrás da cabeça. A longa saia preta do uniforme cobria as pernas e a camisa branca, também do uniforme, era dobrada até a altura dos cotovelos para melhorar os movimentos.
Dinah olhou ao redor do escritório, levantou-se e mudou o caminho que precisava fazer. Ela precisava falar com Normani. Com passos elegantes e despreocupados, passou por algumas mesas até chegar à que ficava na segunda fileira e precisou se abaixar para sussurrar.
— Notei à distância que algo está lhe incomodando. Conversaremos ao final do expediente. Tente não atrair mais reclamações. Escutarei suas elucubrações e sei quais são — disse rapidamente, seguindo para o gabinete do chefe com papéis em mãos.
***
Enquanto os cidadãos seguiam suas vidas para manterem uma classe de ricos preocupados com assuntos que somente o afetassem, duas criaturas aproveitavam a solidão e quietude de uma casa, aparentemente inóspita, situada próxima à rua Dort. Cada uma lidando com o tempo da forma que lhe era mais prazeroso ou disponível ou possível.
A tinta marcava a tela assim como marcava o papel. Uma mordia os lábios, inclinava a cabeça e se esforçava para reproduzir o jarro de crisântemos. A outra mantinha a expressão relaxada no rosto ao escrever algumas cartas para um conhecido da capital, pedindo alguns componentes abrasivos ou banidos que não eram encontrados em Vincent Malloy. O hidrato de cloral era um dos principais da lista de banidos, nem mesmo os boticários o possuíam, os médicos já não o recomendavam. Passou a ser recriminado quando traficantes de ópio passaram a querer traficar o hidrato de cloral também, por ser um hipnótico.

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Seria Eu Se Não Fosse Você
Fanfiction"Você nem deveria estar aqui. Você não tem idade."