Capítulo 4 - Ille nihil dubitat qui nullam scientiam habet

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Nada duvida quem nada sabe



Cada vez mais entediada sem poder ver o céu cor de pólvora já queimada ou sem poder felicitar o fachinhos cor de champanhe que se atreviam visitar a cidade. Perdeu as contas do quanto planejou um disfarce somente para colocar os pés fora da casa e ver toda a estirpe de Vincent Malloy. Pessoas reais, longe de onde costumava morar, que levantavam cedo, enterravam algum familiar durante a manhã e já tinham os ouvidos atentos para notícias de mais mortes nas trincheiras ou por doenças. Camila odiava guerras e odiava ter que ouvir sobre as consequências delas, mas até isso seria um sinal de normalidade se pudesse sair um pouco.

A compreensão da morta-viva comungava com a necessidade da cientista de manter em silêncio o assunto. Camila ficava presa por necessidade, Lauren por escolha. Era injusto, pensava a morta-viva. Sem biblioteca, sem jogos, sem animais, sem jardim. Restava a ela andar pela casa, que não era grande. Três pavimentos mais mortos do que ela própria, pensava.

Por várias tardes Camila subia para o quarto da cientista, abaixava-se sob a janela e fechava os olhos, tentando escutar os cascos de cavalos no calçamento miserável, gritinhos agudos de crianças, homens e mulheres conversando, brigas... Fingia estar entre eles até Lauren se lembrar que havia mais alguém na casa. A anfitriã, por sua vez, passava os dias no laboratório, local que Camila passou a invadir para não ficar sozinha. Não foi uma atitude espontânea. Percebeu que não poderia tirar a cientista de seu habitat, então ela precisaria ceder.

Não poderia dizer que não tentou movimentar a vida da cientista. Fazia listas para Lauren e a impelia a comprar telas, tintas, revistas, tecidos, agulhas, linhas... coisas que faziam com que o tédio atingisse o ápice em poucas horas. As duas residentes da casa haviam construído um elo e lidavam gloriosamente bem com isso, mas era da natureza da cientista se isolar sem perceber o afastamento e o que ele causava na morta-viva. Esta, por sua vez, precisou aprender a ocupar o tempo infinito para ela. Ouvir o que acontecia do lado de fora era o que mais a entretinha.

Foi através de umas das conversas ouvidas pela janela que Camila descobriu estar ali há 2 meses. Passaram vagarosa e rapidamente. A cada dia aprendia mais sobre os hábitos, feições e deduzia coisas sobre Lauren. Os momentos de silêncio começaram a competir com os de conversas.

Ainda sentia falta de uma ocupação.

Cansada de ouvir a gritaria de Vincent Malloy, decidiu ceder ao que repudiava: atividades domésticas em prol de alguém que não se dispunha a ajudar. Tomou para si a responsabilidade de fazer as refeições da cientista.

Ceder a tal ato demandou uma força internar superior aos próprios ideais. Ela se preocupava com Lauren e notava o quanto a mais nova sabia menos do que ela sobre o mundo, mas quando questionada pela própria Lauren sobre o interesse doméstico, colocou a culpa no ócio.

— Cientista, jamais pense que eu faria algo para amaciar os seus modos desleixados. Tenho ânsia de ocupação, por isso tomei a liberdade de me adequar. Desse modo, você fará compras regularmente. Na lista há um pedido por um livro de receitas. Preciso dele com mais urgência do que qualquer coisa! — disse com uma austeridade geradora de mais admiração da cientista, que acatava as vontades da morta-viva por dois principais motivos. O primeiro estava ligado à culpa sentida por ter feito o experimento. O segundo simplesmente se referia ao fato de Lauren não entender boa parte do que Camila falava e o que entendia, fazia.

Concordância mútua de aprendizado diário. Os diálogos entre as duas levavam horas e metade dessas horas dedicavam-se a explicações. Assuntos que eram desconhecidos, mas a boa vontade de cada uma criava um ponto comum entre as diferenças.

Seria Eu Se Não Fosse VocêOnde histórias criam vida. Descubra agora