Capítulo 2 - Crudelius est quam mori semper mortem timere

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Temer a morte é morrer duas vezes


Em Vincent Malloy os dias de sol eram raros. A predominância da neblina fazia alguns acreditarem que a cidade foi vítima de uma grande maldição no passado, quando o Príncipe Victor III casou-se com a Princesa Victoria e não com a irmã desta, Emily. Emily, pelo que se sabe, sempre foi apaixonada pelo Príncipe e sentiu-se traída pelo homem que amava e pela própria irmã. Então, fugiu com um fidalgo que a queria desposar, mas, dizem, que antes de sair de Vincent Malloy desejou que a cidade inteira se tornasse o que seu coração era: frio e sem vida. E nunca mais ouviram falar dela.

Para Lauren, os dias estavam sendo iguais. Não dormia desde a noite do experimento, que teve sucesso. Por duas noites, e caminhando para a terceira, a cientista seguia com os olhos bem abertos e descrentes com toda a situação. A morta-viva, por sua vez, demonstrava não se incomodar com a presença da outra mulher estática ali. Lauren apenas saía para ir ao banheiro. Chegou a perguntar algumas vezes se a morta-viva gostaria de comer ou ir ao banheiro, mas a negativa vinha sempre. Apesar disso, água era aceita e a cada vez que tomava, o experimento colocava a língua para fora e franzia o cenho. Lauren ficava curiosa e quase não lembrava de si mesma. A mesma roupa de duas noites passadas e o cabelo parecia um dos ninhos de pombos que cuidam da cúpula da única catedral de Vincent Malloy.

A última noite que se passou foi o estopim para tirar o sono da cientista. Não conseguindo mais comunicações com a morta-viva, decidiu que a ensinaria a falar e ter uma vida humana novamente. Mais um ponto desobedecido por Lauren. Nas anotações originais era dito:

Ao conseguir que o projeto ganhe vida, demonstrarei em aulas públicas para que todos possam usufruí-lo.

A cientista sem formação não sentia que deveria fazer o planejado. Não queria fazer da morta-viva um produto. Em completa sinceridade, Lauren não sabia o que faria. Não queria entrar no meio da Medicina com um projeto não útil à saúde.

­— Eu terei que organizar em uma lista o que precisaremos fazer com você. Acredito que ações básicas como falar, ler, escrever... e tudo o que formos notando com o tempo — sem ter com quem falar, decidiu falar sozinha e com a morta-viva ao mesmo tempo. — O que mais?

— Você me parece cansada.

Saltou da cadeira ao ouvir a voz da morta-viva.

Ainda estava perplexa por ter conseguido realizar o que estava nas anotações e por ter um cadáver vivo. Não esperava que esse mesmo cadáver se comunicasse com ela.

— Perdão? — perguntou para certificar que realmente escutou palavras além das próprias.

— Você.me.parece.cansada. — a morta-viva respondeu pausadamente, fazendo a cientista virar com toda a energia que ainda restava.

— Agora pode falar? — foi a primeira coisa que veio à mente. — Como isso aconteceu?

— Eu não sei. Poderia ter saído mais um ronco de porcos, mas consegui formular algo.

Desde então, Lauren não conseguiu perguntar nada mais. Já a morta-viva, por vezes, proferia alguns comentários e jamais era respondida. Lauren se limitava a fingir analisa-la. Fingir era melhor, já que o assombro impedia qualquer raciocínio técnico. Tinha uma morta-viva falando com ela! Era muito para absorver em minutos.

O laboratório continuava da mesma forma que na noite retrasada. Estantes de metal com vidrarias. O chão liso de mármore branco com paredes de mesma cor. Grandes janelas formavam uma claraboia, mas estavam fechadas com madeiras onde deveria aparecer vidros. Não podiam correr o risco de alguém avistar o que ocorria dentro do local. A casa, de modo geral, não era pequena e o laboratório, mesmo sendo um andar abaixo, possuía acesso ao lado exterior de forma independente. Lauren estava sentada no banco alto de madeira que dava altura para a bancada de azulejos. Um espelho que raramente era usado ficava pendurado na parede com escadas para a porta.

Seria Eu Se Não Fosse VocêOnde histórias criam vida. Descubra agora