Sempre achei o Natal uma época do ano curiosa, mágica até. Sei que isso é um tremendo clichê, mas veja bem: aqui estou eu, em um ônibus abarrotado de desconhecidos, os quais provavelmente passaram os últimos meses discutindo com seus familiares, talvez sem falar com alguns. Minha mãe, pelo menos, não liga para a tia Bárbara desde aquela confusão boba em meados de outubro.
Entretanto, por ser véspera de Natal, muitas dessas pessoas estão viajando para celebrar o fim de ano com seus parentes, trocar presentes e bons desejos para 2019. Os irmãos voltarão a se falar, os sobrinhos deixarão de ser chatos e mimados para ser uns amores, os pais alegrar-se-ão por ter a família unida em volta da mesa... é a magia do Natal! Pena que ela dura tão pouco.
Olho pela janela. A paisagem, composta por um misto de árvores secas e algo de verde que conseguiu sobreviver à seca nordestina, parece a mesma desde nossa saída da capital. Entediada, mudo a banda na playlist do celular. No banco de trás, uma mãe continua a falhar em distrair seu garotinho, cujo novo divertimento é chutar meu banco. Aumento o volume para tentar encobrir o barulho que os dois estão fazendo.
Chamo-me Samantha Torres. Tenho outros dois sobrenomes, porém quem se apresenta com o nome completo? Sou uma caloura de arquitetura com cabelos castanhos e incrivelmente lisos ‒ o que é uma dádiva, pois não teria paciência para pranchá-los todos os dias. A mulher adormecida ao meu lado, mesmo com todo o ruído vindo do banco de trás, é minha mãe: Synthia. Ela está dormindo praticamente desde que o ônibus saiu da rodoviária e deve permanecer nesse estado por quase toda a viagem, afinal não é fácil ser enfermeira e dar tantos plantões; ainda mais se, somado a isso, vier o fato de não ter superado a morte do marido dez anos antes.
Estamos na estrada para passar as festas de fim de ano na casa dos meus avós, no interior do estado. Será se este ano ganharei um livro legal de presente? Espero que alguém tenha captado minhas indiretas pelo WhatsApp... Mas o quê?!
Sou puxada de meus devaneios quando, bruscamente, o ônibus freia. Não, violentamente descreve melhor a situação. Os efeitos de uma intensa batida ecoam por todo o transporte. Passageiros despertam, assustados. Somos jogados para frente e depois para trás com força. Quem não está com o cinto de segurança é arremessado por cima dos outros. Cabeças batem nas janelas e pedaços de vidro voam ao nosso redor. Bagagens caem dos suportes sobre as poltronas e espalham-se pelo corredor. Choros. Gritos. Sangue.
~~♥~~
Algo bateu no ônibus. Uma coisa grande. Sei que não fomos nós os causadores da colisão porque o impacto foi suficiente para destravar a porta a qual separa o motorista dos passageiros. Como estou sentada próximo a essa porta, vejo que os carros à nossa frente estão afastados e, com exceção da cabeça do motorista e de uma mochila de viagem, nada atravessou o vidro da frente do ônibus.
Isso mesmo. A cabeça do motorista atravessou o vidro e está lá, presa entre os fragmentos. Por um momento, pareço estar em um daqueles pesadelos especialmente horríveis e vívidos. Não consigo mover-me, só encarar. Então, a voz desesperada de minha mãe retira-me do estupor:
‒ Samantha, olhe para mim. Você está machucada?
Lentamente, volto à realidade entre os passageiros. Reconecto-me ao caos que nos cerca. Minha mãe tem um corte feio na testa, mas de resto parece inteira. Minha cabeça dói. Bati com força no encosto do banco quando fui puxada pelo cinto. Experimento gosto de sangue. Mas isso não é, de longe, o pior. Nos filmes, os ferimentos são romantizados: as lesões parecem temporárias, as pessoas mal reclamam. Fora das telas, acidentes são absolutamente aterradores.
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O Natal dos meus pesadelos
ContoNatal... época de descanso, boas comidas e momentos agradáveis. Pelo menos, isso era o que Samantha pensava, até o ônibus no qual viajava com a mãe sofrer um terrível acidente. A partir desse momento, a jovem vê-se envolvida em um caldeirão de senti...