Capítulo 1

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Os globos cinzentos giravam lentamente na escuridão. A vacuidade era infinita naquele estado de letargia e inutilidade. Aquilo era como atravessar os oceanos que separam a vida da morte, navegar à deriva por longos invernos, de geada e angústia, sem consciência de existir e, subitamente, por um mistério qualquer do universo, estar de volta a uma realidade cinzenta e amarga. Não, Thallimus não sentia vida em seu peito. De forma alguma. Aquela era uma sorte da qual ele não mais se lembrava e jamais voltaria a sentir. O ar em seus pulmões, o cheiro doce do orvalho, a visão caleidoscópica dos pássaros multicores em festa? Definitivamente todas essas coisas não eram mais para Thallimus, o Zumbi de Punho Único.

Lentamente ele sentiu a dor invadir seu corpo, mesmo prostrado no chão frio e úmido. A imobilidade era incômoda e humilhante, mas fazia-se necessário rompê-la. Thallimus reuniu todo o seu ímpeto para mover um dedo. A disposição hercúlea obteve algum resultado: uma falange foi movida, a ponta descarnada de seu dedo, com a ossatura gasta, roçou o chão. Mais uma onda de esforço foi despendida e o zumbi liberou um gemido, longo e arrastado. Uma voz débil e aparvalhada ressoou pela câmara escura, um grande feito para quem, mais uma vez, rompia os véus que separam a vida do vácuo entre os mundos.

Aquela era a pior sensação do mundo. A inexistência não era ruim, do ponto de que não se podia senti-la, mas estar subitamente erguido para o "mundo desperto" e dela ter consciência absoluta era o inferno para Thallimus. Fazia parecer inútil sua existência, seus atos, sua lealdade para com o Grande Thanidur, Senhor de Ijaldhi.

E agora o Zumbi de Punho Único podia se lembrar. Fora servindo as ordens do mestre das artes necromantes Thanidur que Thallimus caíra em combate. Sim, ele e seus homens - "homens" mais precisamente, como definia sua Falange - atacaram uma vila recém-conquistada pelo exército. Eles estavam em busca de algo, Thallimus não conseguia se lembrar. Era algo de valor, um mapa ou alguma informação qualquer, uma pessoa talvez, que devesse ser sequestrada para o fim de extrair confissões.

Os soldados nem ao menos mantinham sentinelas, divertiam-se pilhando e aterrorizando os aldeões. Diante de tal cenário, eles invadiram a vila, cercando o armazém e tocando fogo em tudo. Chamas ardiam na noite fria. Sob o torpor do álcool, os soldados tardaram a compreender do que se tratava, provavelmente pensaram numa patética rebelião camponesa. Se tivesse previsto isso Thallimus não teria dado a ordem para atear fogo aos campos. Sua intenção era minar as chances de fixação de um destacamento do exército naquelas terras, não tão próximas, mas no caminho de Ijaldhi.

E isso fora a ruína de seus planos.

O capitão deles rapidamente reorganizou suas forças e, uma vez em formação, Thallimus provou o poder avassalador daqueles seres. Os "homens" de Thallimus foram envolvidos pela estratégia militar bem elaborada, pela força bruta do exército.

Ele sabia que não estava ali por orgulho ou honra, mas para cumprir uma missão. E essa não era necessariamente derrotar aquele destacamento, fazer ruir o posto avançado recentemente conquistado. Eles poderiam cair a qualquer momento depois, desde que a missão fosse cumprida com êxito. Havia algo por que Thallimus estava ali. Por isso ele deixara a Falange combater sem comandos mais articulados, na tentativa de dar-lhe tempo para fazer o que havia de ser feito.

Havia uma criança. Thallimus sabia que ela estava envolvida em sua missão. Ele tinha um tulwar em sua única mão e apontado para ela. Uma mulher loura em pânico gritava desesperadamente. Seus olhos sem vida correram o corpo da criança, da mulher, os cantos daquela velha cabana em busca de algo. O tempo corria depressa, como grãos fugidios de areia escorrem da ampulheta. Thallimus ergueu sua única mão em direção à criança e...

De repente uma grande pressão ruía tudo, dentro e fora de si. Ele não conseguia divisar mais nada, pelo menos não da forma como conhecia. Eram grandes manchas vermelhas que riscavam a realidade, repleta de negrume. O mundo chiava e se encolhia, até que Thallimus não mais sentia nada.

Já de pé na câmara, Thallimus sentia um vazio no peito. Ele havia falhado. Mas o pior era não se lembrar por quê. Sabia que não merecia mais despertar. Nunca mais. Olhou desolado para sua mão, a que faltava. Uma tosca cauterização denunciava que ali houvera algo um dia. Como perdera sua mão? Isso ele também não podia se lembrar. O zumbi sequer se lembrava de qualquer traço de sua vida. Como fora quando ainda se podia chamar humano? Teria sido belo, querido, um homem trabalhador, vivaz ou reservado? Teria formado uma família ou fora um aventureiro a se lançar em viagens por terras desconhecidas? Sua mão ausente não lhe dizia mais que a tosca cauterização: era tão somente um irônico reflexo de si mesmo.

O Zumbi de Punho ÚnicoOnde histórias criam vida. Descubra agora