Capítulo 1

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Capítulo 1

"Quando as águas doces e as salgadas estavam juntas, misturadas,
Os juncos não estavam trançados, ou galhos sujavam as águas,
quando os deuses não tinham nome, natureza ou futuro, então a partir de Apsu e Tiamat, nas águas dele e dela, foram criados os deuses, e para dentro das águas precipitou-se a terra."

Trecho do "Enuma Elish"

Esta é a história remota porém não totalmente esquecida do amor de Inanna e Dumuzi, dois dos dingir que um dia já andaram sobre a Terra, no meio dos homens. Na história deles houve guerra, houve sombra, houve dor; mas também houve alegria, luz, amor.

Tudo começou quando os dingir vieram a ser. Havia os maiores, que foram feitos para governar e dar forma ao universo; e os menores, que foram feitos para servir e ser orientados pelos maiores. Dentre eles havia um de grande poder, chamado Dumuzi; ele fora dotado dos dons dos demais; grande beleza e sabedoria o coroavam, mas também muita sede de independência.

Houve muitos que quiseram ser seus seguidores dentre os menores, e ele os guiou. Porém, com o tempo seu poder tornou-se tanto, que ele quis direcioná-lo a propósitos que não eram os dos seus iguais.

Tudo que os demais criavam, ele queria moldar a sua maneira; e tudo que criava, queria apenas seu, em desejo possessivo. Passou portanto a ser repelido pelos demais, passando a partir daí a não lidar diretamente com nenhum dos outros dingir.

A partir daí, aquela exclusão foi-lhe dando um sentimento de aversão. Criou-se então a raiva.

Dumuzi pensava estar a vingar-se daqueles que não o queriam como senhor possessivo que se tornava. E portanto passou a destruir a obra de seus semelhantes, e eles, bem como seus servos menores, passaram a fugir de sua fúria. Quanto mais fugiam, mais injuriado e com vontade de se vingar ele se sentia.

Mas ele não estava só. Quando ele se apresentava em seu poder, fervendo os oceanos e abrindo caminho na terra, uma das servas menores o observava.

Seu nome era Inanna, a serva do casal Anu e Antu. Assim que colocou os olhos em Dumuzi, guardou-o em seu coração e jamais o esqueceu.

 Assim que colocou os olhos em Dumuzi, guardou-o em seu coração e jamais o esqueceu

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No começo tudo era novo, e os dingir não tinham gênero definido, mas podiam tomar formas corpóreas de gêneros masculino ou feminino,conforme se verificou com o tempo. Alguns gostavam de assumir ambas, outros gostavam de assumir apenas uma. Dumuzi tomou a forma masculina e continuou a reparar nos trabalhos dos demais.

Percebeu que eles assumiam alianças entre si, alianças essas que com o tempo vieram a chamar de casamento. Também ele desejou o que foi denominado de"esposa", uma mulher para ser sua companheira e compartilhar a sua glória. Mas a essa altura as dingir já estavam receosas dele e de seu poder desordenado, e por isso as coisas não foram assim tão simples.

Primeiro ele reparou no esplendor de Nidaba, a divindade da sabedoria e do aprendizado; a luz brilhava em seu semblante, e Dumuzi considerou-se digno de desposá-la portanto.

Abordou-a num dia em que o céu brilhava e ela refulgia sob o brilho das constelações recém-criadas.

- Nidaba - declarou ele - bela você é dentre as belas, e grande é o seu -se minha esposa e assim dividiremos e multiplicaremos a minha e a sua glória.

Mas ela já estava, também, ciente dos excessos que Dumuzi cometia; e via muitode seu futuro obscuro e derrocada apenas em olhar a seu rosto.

- Que assim não seja, pois seu futuro é incerto e sua glória nada mais é que o prelúdio de sua queda; estou destinada a outro. Tome cuidado para não cair ainda mais do que já caiu.

A raiva, então, tornou-se ainda mais intensa no espírito dele; e Dumuzi portanto perseguiu a Nidaba por muitos dias seguidos, mas ela não deu atenção;fugiu dele e se refugiou com outros dingir  buscando proteção sendo ela desposou Haia, o deus mercador.

Então Dumuzi passou a odiá-la e a querer destruir tudo que ela fazia. Onde havia sabedoria, ele plantava a ignorância; onde havia contenção e parcimônia, ele plantava desperdício e destruição; assim foi piorando sua reputação dentre os demais dingir.

Enfim sentiu-se atraído a Damkina, a qual tinha grandes poderes sobre a a reparar nela e a pediu em casamento também, como fizera antes com Nidaba.

- Damkina, vejo um belo futuro a si e gostaria de que fosse minha esposa, para que assim pudéssemos desfrutar juntos desse portento; pois eu gostaria dedar-lhe a glória que possuo e assim multiplicar nossos poderes.

Mas ela também o rejeitou, não querendo coisa alguma com o deus que já antes perseguira a Nidaba.

- Assim como Nidaba, meu destino é dizer-lhe não, pois também vejo em seu caminho derrocada e sombras, e se há glória em meu futuro, não é consigo que eu o terei.

Após mais aquela rejeição, Dumuzi sentiu-se ultrajado e pensou que os demais deuses tinham direito a tomar esposas, mas ele não; e a raiva subiu a seu espírito outra vez.

- Pois aquilo que não me é dado por direito, tomo-o pela força!

Agarrou portanto o corpo da deusa e o despiu, e tentou submetê-lo à sua luxúria à força; mas ela gritou por socorro e veio em seu auxílio Enki, a divindade das águas; e tendo ódio do aviltante ato que seu irmão tentava contra Damkina, o amaldiçoou e tirou-a do poder dele.

- Se ela não se dá a si por livre e espontânea vontade, não a force você. Desta forma, nenhuma quererá ser sua esposa! Afaste-se portanto de nós, e fique sozinho!

Dumuzi rangeu os dentes de dor e frustração; ainda pior ficou quando dias depois soube que Damkina aceitara a Enki como seu esposo. Que tinha ele de errado, sendo o mais belo e um dos mais sábios, e mesmo assim rechaçado por todos?

A partir daí afastou-se dos demais e decidiu construir a seu reino longe de tudo e todos. Passou a vestir somente preto, a pintar os olhos de preto e a ataviar os cabelos com jóias escuras; odiava o brilho das estrelas mas ao mesmo tempo as desejava para si, e tinha ainda mais ódio por não poder tê-las. Assim,observava ele por dias a fio a escuridão imaterial, daquilo que àqueles dias primordiais ainda não havia sido criado, e pensava que ela, a escuridão, era sua única consorte.

Após debater internamente com todas estas coisas, ia e sentava-se sozinho, sem ninguém, em seu trono escuro; e lá ficava, amando e odiando a solidão na qual fora colocado.

Tinha muitos servos, porém a maioria o servia por medo; muitos deles começaram a segui-lo antes de ele sofrer maledicência, e portanto a ele estavam presos mais pelo medo que por outra coisa. Algumas das entidades femininas o serviam sexualmente, mas passavam muito longe do que ele esperava de uma esposa anteriormente; por ora, seu espírito desistira de tomar a uma mulher como consorte, para não sofrer mais decepção. Tinha amantes, mas não se apegava a nenhuma delas. Já não sabia se seu destino um dia incluiria a algo que não fosse aquela solidão perene.

Até o dia em que, indo observar a escuridão, ele finalmente vira Inanna, a divindade das estrelas, a observar a mesma escuridão que ele tanto apreciava.

To be continued 

O proscrito e a rainha (REVISADO E REEDITADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora