thank you being there for me, Beatrice.

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Para Maria Beatriz.



Já fazia alguns meses que eu conhecia Beatrice. Alguns meses recebendo desenhos que me inspiravam a tocar melodias no antigo piano da família. Ou no velho contrabaixo verde abacate, Judy. Era simplesmente inspirador, uns mais que outros e as vezes nem tanto. Ela não só desenhava rabiscos característicos de seu rosto, em linhas torcidas com grandes expressões faciais, como também pinturas em tela que ela observava da janela do meu quarto.

"Jan "

Beatrice não dizia muitas palavras, as vezes apenas pequenos sussurros. Sempre foi um silencio quase absoluto quando estava comigo. Mas sua tentativa de pronunciar meu nome era algo adorável e recente. Neste dia ela me trouxe um desenho do seu antigo gato. Ele era branco e felpudo, um bichano de olho ímpar, amarelo e azul.

Sua beleza era exuberante. Seus cabelos crespos e espessos, arredondado na altura dos ombros, da cor castanho escuro, igualmente dos olhos. O traje que usava era um vestido azul pálido, de cintura elevada, com pequenas mangas bufantes. Ele caia suavemente pelo seu corpo.

Era fascinante e excêntrica, não apenas por seus desenhos incríveis, seu vestido ser do século XVIII ou sua curiosidade excessiva pelos livros infantis que ficava na estante, os quais eu sempre lia (e as vezes para ela). Ela tinha uma peculiaridade assombrosa.

Beatrice era um retrato angelical de uma garota jovem na forma de um fantasma. Um espectro de quem ela já foi um dia em vida.

Na ocasião em que a conheci era uma manhã de outono, eu estava no atelier do meu pai aproveitando o clima frio com uma grande xícara de café recém coado, quando eu a vi perto da grande janela. De início levei um susto, aflita pela repentina aparição. Aquilo era um sonho lúcido? O aroma do café que estava impregnado no ar, despertou-me de quaisquer resquícios de que eu estivesse dormindo ou alucinando. Era real, a moça de cabelos volumosos estava ali se escondendo atrás da cortina. Depois de alguns segundos tive coragem de perguntar quem era.

A princípio não respondeu, apenas saiu de onde estava e foi direto para mesa de centro, procurando por algo. Quando encontrou o pincel castanho-avermelhado, apontou para si mesma e para o objeto lentamente duas vezes, olhando para mim com aqueles olhos esperançosos. Não era nenhum código enigmático que aquilo significava que ela o queria e, sem nem pensar direito, acenei com a cabeça concordando. No instante que aprovei, ela sorriu. Beatrice sempre foi adorável, mas naquela manhã foi a primeira vez que eu fiquei extasiada pelo seu sorriso... seus olhos brilhavam quando começou a pintar na tela branca que ficava do lado da janela.

***

Quando decidi me mudar da cidade para a antiga casa dos meus pais, não poderia prever que eu teria uma relação com alguém. Precisava declinar e como alguém que admirava a beleza deste mundo, o qual já não havia razões para continuar, eu deveria me abdicar de muitas coisas e tentar não desistir outra vez.

O lugar era isolado, ficava a meia hora da vila local, perto de fazendas com produções independentes. Uma casa de campo rústica, construída em madeira. A varanda, sendo um dos melhores lugares para se ler um livro, envolto de flores de primaveras rosas, hortênsias brancas e azuis e singelas margaridas. A paisagem era coberta por árvores robustas e grandes ipês-amarelos.

Eu não diria que a antiga residência é assombrada, apenas cheia de memórias bem vividas. Beatrice é um fragmento de coisas boas. Porém, ela não é a única aparição a perambular pela casa. Havia outras sombras fantasmagóricas e eu aprendi a conviver com eles sem medo, eram apenas espíritos de pessoas mortas.

As vezes eu escutava risadas de uma garotinha no jardim. Eu a vi poucas vezes e quando aparecia, estava brincando de correr atrás de algo. Talvez fosse algum animal que ela tivera. Seus cabelos curtos e dourados sempre brilhavam na manhã de sol, e estranhamente eu nunca a vi em dias nublados.

Nem todos os fantasmas eram como Beatrice, alguns apenas ficavam sentados no jardim apreciando o céu do crepúsculo desaparecer acompanhados de outra memória, outros apenas estavam de passagem perambulando pela estrada.

Eu poderia descrever todas as ações daquele fantasma ao longo que convivi na antiga casa dos meus pais, escrever contos sobre seu gato Celeste e de como seus olhos se iluminavam toda vez que trazia uma cor nova de tintura. A última foi verde esmeralda e azul cerúleo. Algumas de suas pinturas eram totalmente desconhecidas e eu me perguntava de onde ela tirava essas imagens. Isso significava que Beatrice tinha lembranças de sua antiga vida. Sua morte também era um mistério.

Certo dia eu estava contemplando o céu nublado, apreciando o barulho da chuva enquanto dedilhava notas soltas na Judy, praticando uma sequência nova. Algo simples para alguns pensamentos dominarem minha mente, uma delas era o questionamento de como o fantasma morreu. Se eu soubesse que a faria desaparecer por alguns dias eu nunca teria questionado. Me lembro de seus olhos escurecerem , seu rosto lúgubre banhar-se em grossas lágrimas. Aquilo me deixou com um nó na garganta, me arrependi amargamente. Beatrice olhou de relance para o espelho, levantou e desapareceu pela porta.

Após alguns minutos, a chuva que eu admirava parou. Eu estava tão arrependida e envergonhada que desisti de continuar a tocar, desisti de qualquer duvida.

***

Beatrice apareceu depois de dias, escondida atrás da cortina exatamente igual a sua primeira aparição. Seu olhar estava em um ponto fixo, através da janela eu a vi observar as árvores. Depois de minutos ela se virou para mim, com um sorriso agradável e com os olhos brilhantes sussurrou meu nome.

"Janine"

Eu estava tão feliz que não me importei com as lágrimas escorrendo pela minha face, não consegui deixar de expressar um sorriso envergonhado, desviando diretamente para o chão secando as lágrimas de forma desengonçada, em seguida erguendo meu olhar rapidamente para ela. Com meios sorrisos e risadas, andei até o canto da parede em busca do contrabaixo.

Depois que ela desapareceu, sobrou apenas o vazio existencial e mesmo com a presença de outras entidades eu me sentia solitária. Eles eram apenas memórias e Beatrice era presente. Não conseguia escrever, tampouco tocar musicas. Mas alguns dias atrás, quando palavras "Volte... Não me deixe, por favor"  suplicavam em minha mente, uma canção melancólica surgia no papel.

Simples versos com pequenas variações de tons graves e as palavras mais importantes que eu poderia lhe dizer e, nada melhor que em forma de música. Beatrice me olhava com curiosidade quando eu me sentei no banco de centro, ajustado o instrumento da melhor maneira - de forma alguma eu iria errar. Do bolso interno do sobretudo, tirei um pequeno pedaço de papel amassado com as letras em garrancho, então toquei para ela.

Minha voz não era algo de se encantar, eu só escrevia músicas pela paixão e o desejo de algum dia poder ouvi-las na voz de outras pessoas.

Por mais que fosse ridiculamente ruim, a música expressava como eu me sentia. Um pedido sincero e envergonhado de desculpas. Eu não queria perdê-la. Eu não me sentia mais viva, era como se eu fosse uma memória sufocando no desespero pela solidão naquela enorme residência.

Para mim nunca foi fácil de conviver com outras pessoas, sempre foi sufocante o modo como eu devesse me adequar as regras de comportamento sociável para não incomodar ou ser antipática, eu só queria me isolar do mundo, porém com pequenas exceções de pessoas maravilhosas. E uma delas era um espírito de uma garota retraída e desenhista. Talvez por ser fantasmagórica, era fácil conviver com Beatrice. Não existia regras, obrigações, não existia medo. Quando acontecia situações ruins, me confortava com passos de balé e sorrisos verdadeiros. Com ela eu poderia ser eu mesma, com falhas e imperfeições.

Neste mesmo dia, lhe presenteei com uma pequena caixa de cor carmesim forrada em tecido, com Beatrice  costurado em cor dourada. Nele havia um pincel redondo de cabo longo, com a letra B  gravada. E como um gesto singelo de graça, ela desenhou um lago repleto de flores, destacando sempre o verde do ambiente.

Mesmo que ela já estivesse morta, ainda existia um pequeno fragmento de vida em sua alma que me dava razões para continuar a melhor versão de mim todos os dias. Beatrice era minha melhor amiga. Minha única amiga.

BeatusOnde histórias criam vida. Descubra agora