Capítulo 1 - Vozes Noturnas

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"Eu vejo um tolo, um vigia e um mártir. Todos mortos", dizia o monstro em seu leito de morte. "Vejo uma mulher santa, imaculada até o fim. E sobre estes eu vejo A Rainha das Cinzas prostrando-se sozinha, reivindicando um Rei de um mundo distante, distante".

— Ele está vindo. — A voz do homem ao seu lado interrompeu a leitura.

Christopher fechou e guardou o livro. Damien Thomas, ele leu de relance escrito na lombada. O nome revirava-lhe o estômago de leve. Ergueu os olhos, olhando demoradamente de um lado ao outro da rua escura e deserta. Nenhum som. A noite continuava tão calada quanto deveria ser na madrugada de uma cidade pequena. Um ar quente de verão contrastava com ocasionais ventos frescos que sopravam no rosto do jornalista e deixavam sua cara gelada. Ao longe, o som de carros passando por uma movimentada avenida lembravam Christopher de que ainda estava no mundo real, no mundo dos vivos. Era um lembrete bem-vindo quando se emergia tanto num caso como o daquela noite.

— Você tem certeza? — perguntou Christopher.

Está vindo — confirmou o outro homem. — Está perto.

Ele parecia ter levantado do banco e avançava pelo gramado do parque em direção à rua. Christopher podia ouvir o som dos passos sobre a grama, uma melodia suave e quase inaudível. Levantou-se e tentou segui-lo. Seus pés deixavam marcas no gramado úmido com a geada da noite. Saltou meio desengonçado uma muralha baixinha, sujando as mãos de terra fresca e automaticamente limpando-as nas calças de linho. Sentiu o coração disparar um pouco e um certo incômodo na perna esquerda. Já se fora o tempo em que fazer aquilo era natural, seus cabelos negros, salpicados de um grisalho aqui e acolá, provavam isto. Ao pousar na calçada, pisou sem querer num caramujo. Perdão, pensou com legítimo pesar no coração.

A voz sussurrou em seu ouvido novamente.

O que fazer agora?

— Descreva-o para mim — disse Christopher. — Quero saber tudo. Observe-o com atenção, por favor.

Ele não sabe — respondeu de imediato a voz do outro homem. Christopher sorriu e assentiu com a cabeça. O homem ficou confuso e pensou não se ter feito entender. — Ele não sabe que está morto.

— Tampouco sabia você quando eu o encontrei.

Uma brisa fora de hora soprou na copa das árvores do parque e algumas folhas pousaram sobre o chapéu de abas longas de Christopher. A voz do Espírito ao seu lado silenciou, mas ele podia ouvir os passos inquietos de um lado para outro. Estaria ele nervoso? Um Espírito nervoso por encontrar outro Espírito? Podia um fantasma ter medo de outro?

Aqui está — anunciou o homem invisível. De fato, Chris agora ouvia o som débil, mas crescente, de passos apressados. Ele pôs as mãos nos bolsos e tentou parecer insuspeito, ordinário. — Está vestido como um atleta e vem correndo. É um corredor — acrescentou em seguida, como se fosse uma boa ideia: — Eu vou pará-lo para que conversem.

— Não faça...! — Christopher não fora rápido o suficiente para protestar contra a ideia e não pôde evitar a confusão que se seguiu. Fechou os olhos já esperando.

Meros segundos depois, ao que o Espírito flutuou em direção ao corredor, cheio de coragem, uma lufada de vento agitou os galhos das árvores e quase levou o chapéu preto de Chris embora, sacudindo violentamente as abas do casaco sobretudo que cobria o jornalista. O corredor gritou e o berro ecoou por toda a rua, por entre as árvores e para além do parque. Teria acordado a vizinhança inteira se Christopher não fosse a única pessoa em toda a Capital capaz de ouvir os espíritos dos mortos.

Uma Colheita de Inverno | DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora