Decepção?

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Parte 1.

— Garoto, desce para o café. Você vai acabar se atrasando. — Grita minha mãe batendo na porta do meu quarto.

— Ok senhora.

— Senhora é a sua avó, meu querido.

Crio coragem para levantar da cama e ir tomar banho, o lençol estava tão geladinho com o clima agradável que fez hoje de madrugada que a vontade de permanecer deitado era bem maior.

Faltam algumas semanas para eu dizer adeus a minha escola atual, finalmente! Eu espero por isso desde que fui forçado a entrar nela. Quase tudo é proibido, é quase impossível de respirar com tantas regras impostas. É a pior escola de todas, pior ainda são os padres que regulam até a quantidade de tempo que você deve passar nos corredores.

Já consigo sonhar com o ensino médio, vai ser perfeito. Ah, a liberdade finalmente em minhas mãos. Estarei longe dos olhares dos padres fofoqueiros que fazem questão de contar tudo o que faço para o meu pai e para a minha mãe nas reuniões mensais. E que meus novos professores sejam legais, e não peguem tanto no meu pé por tirar nota 7.

— Puta que pariu. — Falo em voz alta sentindo a água fria bater nas minhas costas. Esqueci de trocar a temperatura do chuveiro de novo. Ignoro e sinto todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. Às vezes eu me acho louco por gostar dessa sensação.

Desligo o chuveiro e saio do banho, visto minha cueca e procuro por alguma bermuda limpa nas gavetas do meu guarda-roupas. Acho uma preta bem básica com listinhas cinzas, e coloco a farda da escola, amarela com as mangas pretas.

Meu nome é Ian, o meu cabelo é cacheado e bastante cheio, o que realça os meus lábios grossos e o meu nariz de batata. Sou pardo, de ombros largos, gordinho e alto. Acho que eu tenho um metro e oitenta, não lembro direito, e eu tenho quinze anos.

: - : - : - : -

Me sentei na mesa e peguei um pedaço de torrada, passei manteiga e contei a quantidade de vezes que eu mastiguei para poder engolir. Alguns TOC meu passam do limite. Dei um gole no suco de laranja e estava bom, apesar de ser de caixinha. Peguei uma maçã e corri até a sala para pegar minha mochila.

— Esse daí nasceu corrido. — Escutei meu pai falar da cozinha.

— Bom, o tempo é curto, coroa.

— Eu já avisei para você não me chamar assim, exijo respeito Ian Michael.

— Coroa. — Fala Milena rindo. Minha irmã mais nova.

— Garota. — Repreende meu pai fingindo estar bravo fazendo ela ri.
Corro até ela e dou um beijo em sua testa, ela detesta que eu faça isso. Segundo ela, eu sou muito grudento e chato, mas eu a amo. Coloco a mochila nas costas e saio de casa.

: - : - : - : -

Caminho pela rua até o ponto de ônibus, o estômago começa a roncar e mordo a maçã. Estava doce e suculenta do jeito que eu gostava, madura e vermelha. Sinto duas mãos em meu ombro empurrando o meu corpo para baixo, por sorte os meus pés estavam firmes no chão e eu não cai.

Viro e vejo o Davi, sinto uma pontada de alegria no fundo meu peito. O cheiro de seu perfume invade minhas narinas, é amadeirado e agradável. Não sei o que fazer a não ser encarar ele com um pouco de nervosismo.

— Bom dia. — Ele fala sorridente.

— Hm.. Está feliz hoje.

— Quando eu não estou?

— A noite foi boa então.

— Não. — Ele fala se colocando do meu lado e acompanhando os meus paços. — Vai para o cinema com a gente hoje?

— Não vai dar, tenho que voltar cedo para casa e cuidar da Milena. Meus pais vão ter que sair. — Minto, eu não estava muito disposto a ir para o cinema numa tarde de segunda-feira.

— Que pena, vai perder a estreia do Mad Max.

— Você sabe que eu não gosto, vão ser só são carros psicodélicos em alta velocidade com pessoas estranhas e guitarras de fogo.

— Julgando o filme pelo trailer de novo, que feio, Ian.

— E não vou mentir, você vai se arrepender por ter gasto dinheiro para ver aquela porcaria.

— Falou o saudosista que só não vai por ser fã da franquia clássica. — Ficamos calado por algum tempo. — Poxa, eu queria você lá, só assim eu poderia calar a sua boca.

"Eu queria que você me calasse de outra forma". Penso.

— Rá, iludido. Nosso ônibus está vindo, levanta a mão.

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O Davi é um garoto bonito, os seus olhos pretos chamam atenção e combina com a sua pele branca. Ele é magro e alguns centímetros mais alto que eu, seu cabelo é loiro claro e as sardas em suas bochechas e próximas ao nariz lhe dão um charme a mais.

— Está ansioso? — Ele pergunta se sentando do meu lado dentro do ônibus.

— Para o quê?

— Vazar dos olhos dos padres fofoqueiros? Ora, você não parava de falar isso uma semana atrás. Esqueceu?

— Ah sim.

— Achei que estivesse mais animado, com a nova escola e tal. Pensa na quantidade de pessoas novas que vamos conhecer, nas gatinhas, nas professoras gostosas. Piro só de pensar. — Ele faz um gesto obsceno masturbando o ar.

— Garoto, controla esse seu beta interior pelo amor de Deus. Estamos em público, porra.

Na verdade, eu não estava com vergonha de que as pessoas o vissem masturbando o ar, eu estava era nenhum pouco interessado no assunto garotas e professoras gostosas. Ele não sabe que eu sou gay, e também não sabe que eu gosto dele. Todas as vezes que eu tentei contar para ele, eu travei, suei frio, evitei e inventei desculpas esfarrapadas alegando não ser nada importante. Talvez de hoje não passe.

— Vai ser legal.

— Ian, eu preciso conversar com você no intervalo. É bem sério.

— E para que adiar por tanto tempo assim? Estamos um do lado do outro, fala agora.

— É importante, e eu não me sinto confortável falando sobre isso em público.

— Ok. — É só o que consigo falar.

Pego o meu fone na mochila e coloco em uma playlist aleatória do YouTube Music que começa a tocar "Someone You Loved" do Lewis Capaldi. Felizmente agradecido por essa porcaria de algoritmo ter me dado bom para ouvir. Encosto minha cabeça no vidro e observo a paisagem, as árvores ficando embaçadas pela minha visão que encara a água do rio que parece agitada.

Sinto seu olhar sobre mim e tento continuar concentrado na água, ignoro tudo em minha volta permanecendo tranquilo. Não demonstrar nervosismo quando a pessoa que você gosta te encara por um longo período de tempo é essencial. Sinto sua mão sobre a minha, o toque da sua pele me deixa arrepiado, ele começa a agita-la e eu tiro o lado direito do meu fone.

— Nosso ponto, vamos.

Eu o acompanho.

: - : - : - : -

— Eu espero que essas últimas semanas não demorem.

— Eu também não, quanto mais rápido nos livrarmos daqui, melhor.

— Algum problema, senhor Davi? — Louise chama a sua atenção.

Ela é uma das professoras chata da parte de exatas da escola. Além de ferrar os alunos em geometria, ela também dá aula de matemática. Explica muito mal e quase não faz nada em sala além de se passar exercícios. Segundo ela: "praticar mais de vinte questões de matemática por dia leva o ser humano a perfeição". Essa merda toda que só faz sentido na cabeça dela, não é à toa que a maioria dos matemáticos morrem de loucura.

— Não que eu saiba. Temos algum? — Ele a questiona com sarcasmo.

— Não em minha aula pelo menos, outra conversinha sua e eu te expulso da minha aula. E na próxima só entra acompanhado dos pais.

— Oooooh. — Fala a sala em uníssono.

— Silêncio. — Ela reprime a sala.

Abaixo a cabeça e começo a rabiscar algo no meu caderno de desenho, esboço uns traços mal feito do que era para ser um Superman, mas que se eu colocar uma mascará verde e um anel, fica a cara do Lanterna Verde.

Sinto alguém cutucar o meu ombro direito e retiro com a mão sem prestar muita atenção, estou concentrado no meu esboço. Cutucam novamente e eu agarro o dedo da pessoa, a encarando. Era o Davi, gesticulo com a mão e a cabeça querendo saber o que ele queria.

— Me encontra na sala.... No intervalo — E eu só consigo escutar isso, ele sussurrando é horrível.

— O quê? Me manda uma mensagem.

— Ian e Davi, os dois para fora da sala agora, e na próxima aula tragam os seus pais.

— Professora, mas...

— Não foi o primeiro aviso, querido. Saia agora antes que eu tenha que tomar outros meios mais rígidos. — Ela me interrompe, me deixando com cara de idiota para o resto da sala, que cochicha e ri baixo para que ela não escute.

— Chata. — Esbravejo.

Me levanto e pego meu celular com o fone de ouvido na mochila. Vou caminhando rápido para o refeitório, sento em uma mesa no canto bem afastado das poucas pessoas que estavam lá comendo. Abaixo a cabeça e começo a entalhar na madeirada mesa com a ponta de metal do meu compasso.

— Que loucura foi aquela?

— Qual?

—Chamar a Louise de chata, na frente da turma toda. Ela vai te comer vivo, você está ferrado.

— Estou nem aí, já passei na matéria dessa vaca mesmo.

Ele dá uma risada suave.

— Você está insano nessas últimas semanas, tem algo acontecendo que você não quer me contar?

— Não, o único que guarda segredos aqui é você. — Aponto para ele. — Desembucha logo o que você tinha para me falar na hora do intervalo. Estamos praticamente isolados aqui.

— Curioso você hein. E se eu quiser te fazer esperar?

— Aí vai ser eu que não vai querer saber e você vai ficar segurando essa sua cara de cu raivosa por muito tempo.

— Calma, abaixa os espinhos.

— Coitado da criança. Eu estou impaciente, desembucha, porra.

— Eu não sei por onde começar, estou com vergonha. Não me sinto confortável em falar disso aqui, sabe?

— Ok, se você não quer contar, então eu não sou a pessoa certa para saber. —Falo me levantando e ele prende sua mão em meu pulso me puxando pra baixo.

— Facilita, cara. Já embaraçoso demais eu ter que me abrir sobre isso com você.

— Olha, vamos contar até três e você fala. Eu prometo que lhe conto um segredohoje também.

— Olha só, parece que não é só eu que guarda segredos aqui.

— 1, 2, 3. — Respiramos fundo na mesma hora. — Eu gosto de você.

— Eu sou virgem. — Ele fala.

— Oi? — Falamos os dois na mesma hora.

Ele solta o meu pulso e se afasta, como se o que tivesse ouvido de mim o incomodasse, o ferisse de alguma forma. Ele me encara por alguns segundos e depois passa a encarar a madeira da mesa. Ele permanece calado.

— Você não pode estar falando sério. — Ele quebra o silêncio.

— Eu estou. — Talvez o fato de eu ter sido direto demais não fosse o melhor caminho a percorrer. Não só o assustei como me assustei por ter tido a coragem de falar aquilo em voz alta. Algo que guardei dentro de mim por muitos anos. —Eu gosto você há muito tempo, eu tentei reprimir, colocar os seus defeitos na frente de suas qualidades. Eu juro que tentei te esquecer de toda forma, mas agente não manda no próprio coração. — Desabafo de vez enquanto ainda tinha coragem e fôlego, dou as costas para ele e saio caminhando em direção ao corredor do pátio.

Me encosto em uma das árvores e me sento em suas raízes cruzando os braços em torno das minhas pernas, dou play no celular que começa a tocar "If I Were aBoy" da Beyoncé. Talvez minha amizade com ele acabasse aqui, ou talvez ele só precise de tempo para assimilar todas a informações que joguei em cima dele. O fato dele ter ficado calado e perguntado se eu estava falando sério machucou um pouco.

Talvez ele duvidasse que eu fosse capaz de gostar dele ao ponto de ama-lo. Era mmuitos grandes talvez para escolher só um. Minha cabeça estava confusa, eu estava confuso e um pouco arrependido.

Ele veio em minha direção, mas passou por mim como se eu fosse um desconhecido.Eu o encarei, não por muito tempo. Uma lágrima teimou em cair do meu olho direito e eu enxuguei rapidamente para que ele não percebesse caso tivesse me olhando.

O sinal já estava perto de tocar para a próxima aula, se levantei e limpei aparte de trás da bermuda que sujou um pouco de areia. Me virei e pedi muito para que o eu estava vendo fosse falso: O Davi estava beijando a boca da Marcela. Quando percebeu que o encara, ele parou assustado e veio andando rápido em minha direção.

Não fiquei parado esperando por ele, o sinal tocou e eu corri, corri para a sala para pegar o restante das minhas coisas e meter o pé dali. Eu queria chorar, eu estava angustiado, queria minha cama mais que tudo. Queria poder chorar no meu quarto, ou debaixo do meu chuveiro que ninguém me questionasse o motivo.

— Ian. — Ele me puxou pelo braço enquanto eu jogava meus materiais dentro da mochila de forma desorganizada.

— Vai se foder, seu filho da puta. — O encarei com raiva, gritando. Por um momento eu esqueci que já estava dentro da sala de aula. — Não encosta em mim,seu ser repugnante. Eu achei que você era diferente dos outros dessa escola,mas é um lixo igual a eles. — Botei a mochila nas costas e o empurrei para a longe.

Comecei a andar rápido para a saída da escola, eu não queria ter que ficar mais nenhum minuto ali. Aproveitei que alguns alunos entravam só no segundo tempo e passei voando pelo vigia que sequer perguntou para onde eu ia. Senti a mão do Davi segurar meu pulso.

— Não é nada disso que você está pensando, caralho. Eu juro que se você me der alguns segundos eu posso explicar. — Sua expressão era de desespero.

— Eu. Não. Quero. Porra. De. Explicação. Nenhuma. Vindo. Da. Sua. Boca. — Falei todas as palavras com raiva e pausadamente. — Me esquece caralho, nossa amizade acaba aqui. Me solta. — Tirei sua mão de mim e corri para pegar o ônibus que tinha parado no ponto. Ele tentou me acompanhar, mas o motorista fechou a porta.

Vou para o fundo do ônibus e me sento na janela, aumento o volume do meu celular até o último volume. E as malditas lágrimas vem em peso escorrendo pelo rosto.

Permissão para beijar Where stories live. Discover now