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— Tenhooo... fomeee...

Papai estende sua mãozorra sobre a minha, cobrindo lençóis e meus dedos encardidos.

Quando foi que o mármore de sua pele se tornou rachado e roído pelo tempo e pela doença? Quando foi que a brutalidade quente do escuro em seus olhos pequenos adotaram aquelas bolsas roxas ao redor deles? Quando foi que lágrimas frias começaram a escorrer pela praia dos meus olhos?

Ele tosse, posso ver o sangue manchando seus dentes acavalados até atingirem um tom amarelado de quem fuma, e meu pai nunca colocou nenhum mísero cigarro sequer em sua boca. Ele me encara, os olhos cheios de remela e o respirar pesado, catarrento, muco nas bordas da garganta. Tosse mais uma vez.

— Depois disso será você e ele — a voz tão fraca que mal posso ouvi-lo — você sabe o que fazer?

Respiro fundo, posso ouvir a voz gutural e doente dele retumbar pelas paredes até tremer em minha espinha, um ruído para ser mais exato, nada semelhante à de um homem. O frio de repente me acerta, um restinho do inverno sopra neve em minha nuca. Pigarreio antes de responder.

— Alimenta-lo.

— Você tem medo?

Ele sorri, tem algo afiado no abrir de seus lábios, um canino projetado, ensanguentado, que logo some naquele horizonte de dentes.

— Não. Eu estou voltando de onde eu vim, se é que você me entende.

Ambos rimos. Um som anasalado e sem graça, sem realmente achar graça no comentário sujo e de duplo sentido.

Tenhooo — vovô rosna, em meio a tosses e sons que não sei explicar — fomeee....

Cerro os olhos com força, me sinto enjoado na boca do estômago, como quando uma tempestade atinge nossa casa, os relâmpagos queimam os troncos das árvores ao redor, ou como quando papai sai de casa para buscar alimento para o pai dele. Tudo remexe, vibra como num maldito terremoto. A mãozorra do papai toca meu rosto e sobe para minha cabeça raspada, desenhando com a palma da mão num carinho manso.

— Vai ficar tudo bem, você é um bom garoto — tosse, sangue pinga dos seus dentes tortos — o que eu tenho aqui — com o punho fechado bateu no próprio peito — devo durar bem umas duas semanas, talvez mais. Vai ter tempo de se preparar.

— Você realmente tem que fazer isso?

Tenhooo — me encolho — fomeee...

Papai sorri esticando a boca de lábios finos e craquelados. Há suor gélido cobrindo a palma de sua mão e molhando minha cabeça.

— Eu vou morrer de qualquer jeito garoto, isso é só uma maneira de te ganhar tempo.

— TENHOOO... FOMEEE...

Os gritos se repetem cada vez mais desesperados, frenéticos, enlouquecidos, espancando as paredes e fazendo poeira cinzenta e bolorenta cair sobre meus ombros. Eu e papai damos um último olhar triste e longo, sem trocar nenhuma última palavra, e então um abraço duro e sem jeito. Braços musculosos e cobertos de cicatrizes do trabalho braçal e duro se enroscando. Sinto seu peito no meu, seu coração como bomba contra o meu, fraco e tímido, em prantos.

TENHOOO... FOMEEE...

Ele se ergue, se separa de mim, as lágrimas cinzentas e pesadas correm pelo seu rosto pálido como se a doença estivesse o inundando, vazando e pingando pela ponta dos longos cílios. Ele se despe da camisa de flanela na minha frente, lenta e vagarosamente com os dedos grossos e calejados em cada botão, mas com os olhos alagados no armário que sacoleja violentamente.

O tecido cai e as veias negras pulsando em sua pele, a morte cobrindo cada pedaço de derme num abraço lento e dolorido.

TENHOOO. FOMEEE.

Suas mãos pairam nas maçanetas e o sacolejar cessa em súbito, meu avô sabe quando é hora de parar com a pirraça e aguardar o jantar. Ele abre as portas, entra de uma vez só e fecha as portas atrás de si com força.

Primeiro o silêncio, dura pouco, mas é forte, fantasmagórico como risadas que não ecoam de uma garganta morta, um som vazio e zombeteiro que formiga em minhas costas e na palma suada das minhas mãos como formigas, e então o som de carne sendo mastigada, aquele som suculento de nervos, músculos e gordura sendo rasgados em pedaços e mais pedaços menores, sendo cravados por dentes, presas, e ossos quebrando sob a força de mandíbulas.

Vomito no chão do meu quarto, enquanto vovôdevora papai dentro do meu armário.



***

notas:

Bem, seja a minha primeira ou minha quinta vez postando no Wattpad, não importa quanto tempo passe... eu continuo nervoso. E pra melhorar essa é minha primeira vez escrevendo terror e horror.

Então, é... espero que tenham gostado desse primeiro capítulo... são cinco partes assim como diz a capa, já terminadas e que vão ser postadas semanalmente (muito provável).

Por hoje é só, me alimentem com suas opiniões, suas visões para o futuro.

P.S. Ah, não esqueçam do mistério em volta do folclore do conto, as migalhas já foram começadas a serem espelhadas desde a primeira letra, cabe a vocês acharem o caminho para casa.

Me AlimenteOnde histórias criam vida. Descubra agora