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 A polícia arrombou a porta.

Eram dois deles, fardados em azul claro, gravatas pretas e pistolas engatilhadas em suas mãos. A picape vermelha que lhes foi reportada estava do lado de fora daquela casa, quase cabana para ser justo, com o motor ainda quente. O suspeito deveria estar dentro da casa, em algum lugar por ali.

As moscas perambulavam o ar, acompanhando brisas quentes, bolsas de cheiro pesado e enjoativo. A pistola revirou o lugar com o bocal ameaçador, passou pela poça rubra que infiltrava no chão de madeira, então pelos cantos negros e pela cozinha. O oficial se sentiu claustrofóbico naquele lugar, suando pelas axilas e pela nuca.

— Você sobe que eu vou vasculhar por aqui — disse seu colega.

Ele encarou a escada. Tinha algo nela que lhe dá arrepios. Talvez fosse em como sua madeira era escura e parecia mofada, curvada sob o peso de um sem-número de pés que nela pisaram, tinha haver com o ângulo desregular que os degraus formavam entre si e como o rastro de sangue se espalhava em lágrimas pelos veios da madeira.

Respirou fundo, pisou no primeiro degrau.

Ele estava errado, não era nada daquilo que lhe dava temores, ele pensou enquanto subia lentamente com a pistola suada nas mãos. Era a escuridão sólida que vinha entre os degraus, no espaço aberto entre eles que poderiam esconder qualquer coisa, o nada e o tudo, uma boca cheia de dentes que arrancaria seu pé direito em uma só bocada ou o olho vazio de uma escopeta que dispararia contra seu joelho com chumbo ardente.

Não sabia qual das opções era pior.

Alcançou o topo da escada após longos instantes incalculados. Mesmo dali ele conseguia ouvir o choro da madeira ao suportar o peso de seu parceiro no andar de baixo.

Um negro puro e líquido o recebeu, dançando em sombras de criaturas irracionais diante de seus olhos. O som de passos e o silêncio ensurdecedor, seu coração bombeava como explosões de um motor. Um sussurro gélido soprou em círculos pela sua pele, os pelos ralos se ergueram, atentos, e um frio lhe acertou o estômago mesmo com o tecido pesado da farda. Calafrios.

De algum dos quartos ele ouviu um rugido e então um choro, um balbucio indecifrável. Agudo e quebrado como cacos de vidro, vindo de uma garganta mal formada, um choro que facilmente seria confundido com o ganido de um animal. Porém, o oficial reconhecia muito bem aquele som de noites mal dormidas e quentes.

Do cinto, ele alcançou a lanterna e lançou luz sobre as sombras dançantes.

Começou a seguir o som que ia aumentando a cada passo junto do cheiro de carne morta e podre, um cheiro doente, como uma cicatriz fresca coberta de pus. Era o hálito do Diabo e seu cantarolar. Sentiu uma urgência ácida crescer na garganta, bile amarela e fedida forçando caminho para cima. Engoliu com força. Cada vez mais perto, pistola e raio ofuscante de luz a frente do peito.

Parou diante de um porta comum, como toda as outras, madeira escura e mofada, uma maçaneta redonda feita de latão antigo. O piche da noite suspirava coisas contra sua nuca eriçada, contos de sangue e canibalismo, imagens cruéis de órgãos se revirando como vermes vivos. Fechou os olhos por um microssegundo e por trás das pálpebras suadas imaginou seu próprio filho recém nascido, o estômago rasgado com suas entranhas novinhas, cheirando a talco, expostas, um monstro cravando seus longos dentes em sua coluna frágil como um fio de cabelo. E sua cabeça, decepada num tapa, caída no chão empoçado de sangue, a boquinha pequena e desdentada aberta numa lamúria quieta e eterna.

Arregalou os olhos e chutou a porta, de uma vez só. A imagem lhe causaria pesadelos mais tarde.

Quarto vazio, simples. Uma cama de solteiro coberta de farrapos na mesma parede da porta, do lado oposto, a janela onde as unhas de uma árvore morta batiam e, entre esses dois elementos, um armário enorme de portas adornadas com vincos sem sentido e sem padrão aparente. Diante das portas, sentado no chão frio, a origem do choro.

Um bebê, chorando, esperneando com pernas gorduchas, lutando contra o ar. O rosto muito vermelho com a força que fazia, e o corpo também, entretanto, do sangue que manchava sua pele alva e das vísceras roxas enlaçadas em seus membros e seu tórax.

A arma foi para o coldre, assim como a lanterna. O policial se adiantou e tomou o bebê nos braços sem se preocupar com o vermelho manchando o azul da farda. Desfez a criança das entranhas e limpou o sangue como pode. O choro havia parado. Agora havia curiosidade passiva em suas feições cheias de possibilidades. A luz da lua massageou sua pele, deu uma oportunidade ao homem de observar aquela criaturinha. Um punhado de fios ruivos no topo da cabeça e grandes olhos negros, fundos como fossos, buracos gêmeos sem fim. Ergueu-o, procurou por feridas naquele corpo pequeno, macio e sujo.

Então viu, entre suas pernas, mesmo com a certeza de aquele ser humaninho era um garoto recém nascido de talvez oito ou nove meses, mesmo assim, entre suas pernas, onde sombras ocultavam uma terrível verdade, quando o luar atingiu, no local onde intimidade deveria despontar, não havia nada, exceto por uma confusão lisa de carne e pele queimada que cheirava a podridão.

Me AlimenteOnde histórias criam vida. Descubra agora