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Já fazem vinte dias, quinze horas e trinta e sete minutos que meu pai se sacrificou.

A casa nunca esteve tão silenciosa e tão barulhenta. Quando não é meu avô berrando pelas paredes num som angustiado que me acorda das poucas horas de sono a que me rendo ou que interrompe minhas refeições numa ânsia espumante, então é o silêncio agudo, cortante e áspero como aço sendo raspando contra pedra.

Ele grita que tem fome, ele chora que tem fome e eu tenho sono. Existem fantasmas púrpuras ao redor dos meus olhos, pareço cada vez mais com uma caveira.

A televisão de tubo está ligada em chuvisco, estática quieta que não me distrai, é apenas uma claridade confusa que machuca meus olhos. Quando me mantenho muito tempo olhando para ela, com a faca de carnes pousa sobre a mesa de centro e o revólver sobre meu colo, e depois olho para algum canto escuro vejo as feições do meu pai formada pelos contornos do cabideiro e o canto da porta da despensa. Ele me encara com a mesma intensidade que seus olhos carregavam em seu último dia comigo.

É o único motivo para manter a televisão ligada.

Estou chorando.

O revólver pesa em minha coxa e ele nem mesmo está carregado com seus seis disparos, a faca brilha com a luz da televisão. A casa treme, poeira cai sobre meus ombros enquanto vovô tem mais uma crise de fome. Consigo imaginar a fome o corroendo, o devorando por dentro como um verme gordo, amarelado, suculento, com gomos verdes gosmentos por toda sua extensão e uma babá ácida escorrendo de sua boca cheia de pequenos dentes serrilhados, mordendo as paredes do estômago sem fundo do meu avô.

Sorrio.

Os gritos ecoam novamente, mais altos com um quê metálico de sangue pingando de dentes. As feições feitas de sombras de papai, no canto da sala, me dizem que é hora de trabalhar. "Não podemos deixar a família morrer" é o que ele diria.

Me levanto da cadeira, a espinha estremece, reclama com rangidos de dobradiças enferrujadas. Apanho o revólver numa mão e a faca na outra. Caminho até meu quarto, o mesmo quarto aonde o armário sacoleja e os gritos rasgando paredes como rasgam uma garganta, não são mais gritos são ruídos, sons desconexos que formam uma única palavra de novo e de novo.

fome... fome... fome...

Eu sei, vovô.

Em cima da mesa jaz a caixa com duas dezenas de disparos para o revólver, cato seis sem pressa alguma e coloco cada bala em seu no buraco do tambor. Minhas mãos não tremem, não suam contra o couro no cabo ou no metal frio, estão acostumadas, condicionadas. Pego mais um punhado de balas, mais uma seis, não me dou ao trabalho de contar, e enfio no bolso de trás da calça jeans. Ao lado da caixa de munição, uma máscara preta com buracos desajeitados para os olhos e a boca, que eu mesmo fiz com uma tesoura de ponta cega e beiradas sem fio. Me sinto particularmente orgulhoso por essa peça.

fome... fome... fome...

Eu sei, vovô.

Os buracos na máscara me encaram fundo, cavando buracos em meus próprios olhos com pequenas pás de antecipação. Eu deveria me tornar aquilo, aquela figura vestida de sombras e sangue, assim como papai havia feito.

Me lembro quando o vi vestido com isso. Nu, exceto pelo rosto, coberto de terra, de escuridão e de sangue, como um louco na lua cheia que mija em si mesmo e rola por cadáveres dispostos no meio do bosque.

Não foi aquilo que me deu medo, foi quando vislumbrei sua intimidade.

Ele não possuía um pau, pênis, pinto ou qualquer nome que possa chamar, não como apareciam nos vídeos pornos que passavam de madrugada na televisão. Era uma confusão de terra, pele e carne que minha mente não conseguia compreender, um embaraçado de pelos ruivos como seu cabelo, sujos e pele escura como se tivesse sido queimada.

Eu tinha treze anos de idade na ocasião.

Ele me acordou pressionando sua mão molhada sobre minha boca, recordo claramente do gosto ferroso e elétrico que senti em meus lábios, familiar como brincar com uma pilha na boca quando bebê. Suas digitais estavam molhadas, rubras. Seus olhos diminutos brilhavam no escuro, o armário de vovô estava quieto, mas não adormecido, apenas quieto como um predador noturno.

— Venha comigo, preciso de ajuda — ele sussurrou, os lábios se moviam muito rápido pelo buraco da máscara.

Ele soava maníaco com sua máscara cobrindo o rosto, seu corpo nu, imundo, e sua ausência de pau.

Os buracos na mascara ainda me encaram.

O silêncio me acerta de repente. Não é um silêncio completo e não é reconfortante, é jocoso, frio e malvado como o respirar de um animal ou os sonhos de um nazista.

Largo a mascara sobre a mesa junto com a faca e a arma agora carregada.

Vovô pode segurar sua fome por mais algum tempo, ainda não estou pronto para isso.

Desço as escadas até a sala e me largo na poltrona empoeirada mais uma vez, um cheiro azedo se ergue ao meu redor e faz meu nariz coçar. A televisão ainda está ligada na estática cinzenta e morta e o rosto do papai ainda paira na escuridão no canto da sala, os traços sóbrios estão mais vivazes por incrível que pareça. Sem abrir a boca ele me diz que está decepcionado.

— Ainda não estou pronto.

Ele retruca dizendo que a família é o maior bem que um homem pode ter, que meu avô é tudo que me restou agora.

— Eu sei, só me dê mais tempo.

Não há uma resposta dessa vez, seu rosto tornou de volta para a escuridão por trás de minhas pálpebras no meu reino de sonhos gélido e solitário. Um peso se instala em minha nuca, sua decepção cria um nó de forca em minhas entranhas e o salgado desce pela cortina dos meus olhos.

— Desculpe, papai... logo eu prometo.



***

notas:

bom dia, boa tarde, boa noite.

mais um capítulo postado e eu não tenho nada para dizer para vocês que não tenha dito antes. Esse é um dos meus capítulos preferidos por várias razões, talvez seja pelo que eu quis passar e as reflexões que ele me trouxe, talvez seja por ter a maior pista da minha teoria da conspiração...

ou simples porque todos os meus personagens tem relações difíceis com seus pais...

eu não sei, só sei que estou com sono, então boa noite e não deixem o vovô devorar vocês, carne assustada não faz bem pra ele

Me AlimenteOnde histórias criam vida. Descubra agora