Capítulo 1- A Festa

2 1 0
                                    

Consigo escutar o som inebriante e constante daquela irritante música eletrônica vindo de dentro do apartamento de Ana, logo no andar de baixo, com aquele bando de pessoas bêbadas dançando e se jogando em cima umas das outras. 

Aqui de cima, no terraço do prédio da minha melhor amiga, consigo sentir a brisa fria da noite sem lua de hoje e por um momento quase consigo sentir uma espécie de paz, até um casal idiota de pessoas claramente fora de si escancarar a porta do telhado e, rindo mais alto que o necessário, se esconder atrás da caixa d'água e começar a fazer só Deus sabe o quê.

Tento me concentrar na brisa do vento e na bela visão que tenho da cidade aqui de cima, no entanto os risos me incomodam bastante. Irritada, tiro meus sapatos pretos de salto alto e me aproximo da beirada do terraço, subo no degrau que há ali e fico bem na ponta do prédio, olhando sem medo algum para baixo. Sempre fui apaixonada por lugares altos. Eles me presenteiam com a clareza.

O leve medo que se agita dentro de mim me permite sentir novamente aquela sensação doce de paz, meus sentidos não estão mais captando o som distante da música alta e nem as luzes de balada perturbadoras e desordenadas, porque estão muito ocupados tentando impedir que eu caia e me transforme em uma coisa suja e bagunçada bem ali na calçada.

-Espero que você não esteja pensando em se jogar daí de cima...- escuto uma voz masculina dizer logo atrás de mim.

Levo um susto no primeiro momento e quase me desequilibro, mas consigo me controlar o suficiente pra descer da beirada antes de me dar ao trabalho de dirigir a palavra ao estranho. Já de volta para o chão, respondo:

-Só o faria se você me assustasse dessa maneira novamente. Quem é você?

O homem alto, com cabelos escuros nos ombros e barba por fazer, responde:

-Ninguém importante. Só não queria que a noite terminasse em tragédia.

Olho para seus olhos que pela ausência de luz que não seja a da lua sou incapaz de reconhecer a cor, mas o que vejo ali que me surpreende é um brilho misto de curiosidade e diversão, não sei se apenas pelo fato de ter encontrado uma garota que aparentemente tentava se suicidar ou apenas pela vida de modo geral.

-Eu não ia pular, se é isso que te preocupa, eu só precisava de mais... Não sei bem o quê.

Como explicar para um completo estranho que eu precisava acalmar meu cérebro já naturalmente agitado de todas aquelas luzes e aquele barulho e aquelas pessoas, como explicar que eu precisava sentir alguma coisa, qualquer coisa que fosse, para que eu não começasse a pensar coisas ruins?

-Testando limites, hum?- ele disse.

-Hã?- respondi.

-Vendo quão longe você consegue ir, ou o quanto consegue aguentar, buscando sentir esse algo mais. Estou certo?

-Você por acaso é formado em psicologia?- respondo ceticamente, porém internamente estou boquiaberta.

-Em psicopatologia, na verdade...

Não sei o que responder com essa constatação, e quando estou prestes a inventar uma desculpa para fugir dali devido ao meu pavor de profissionais cuja função é compreender minhas emoções e pensamentos melhor do que eu mesma, ele começa a rir.

-Só estou brincando!- diz.

Vejo o canto de seus lábios formarem um sorriso besta enquanto o encaro com uma expressão de choque e fingida indiferença. Mas que perda de tempo!

-Com licença, vou voltar lá para dentro, preciso falar com uma amiga minha- minto.

-Não, você não precisa, tudo bem se não quiser ficar aqui em cima conversando comigo e escutando aquele belo casal fazer coisas obscenas,  mas acho que você não quer voltar pra toda aquela agitação sem sentido e aquelas pessoas bêbadas que agem como adolescentes desenfreados. Não estou certo?

Pela segunda vez na noite perco as palavras e não sei como reagir ao fato de um estranho conseguir dizer coisas tão certeiras sobre mim mesma. Apesar do medo que sinto de tudo aquilo que me é desconhecido e fora de meu controle, sinto essa estranha curiosidade em saber mais sobre esse homem diante de mim e sua incrível capacidade de me decifrar como a um livro aberto.

-Acho que você está certo...

Sento-me no chão gelado, apoiando as costas do degrau sobre o qual estava de pé até poucos minutos. Tomo cuidado para que meu vestido não suba e dobro minhas pernas ao sentar.

-Sou tão superficial que até um estranho consegue dizer com exatidão o que estou sentindo?- pergunto, com medo da resposta.

-Ou você é tão complexa que somente outra pessoa complexa é capaz de entender, mesmo que essa pessoa seja um estranho em uma festa- ele responde com naturalidade.

Prefiro pensar dessa maneira também, entretanto não o direi.

-Qual é o seu nome?- pergunto.

-Um nome diz muito sobre uma pessoa, porém não a define. Por que gastar o tempo perguntando o nome de alguém quando se pode conversar sobre temas muito mais interessantes, como a rã australiana?

Acho que esse cara já está forçando a barra de esquisitices, mas não digo nada, porque prefiro conversar com ele do que voltar para festa.

-O que tem de tão interessante nessa rã?

-Bem, ela engole os próprios filhotes e deixa que eles se desenvolvam dentro de seu estômago, e depois, quando estão completamente formados, ela os regurgita.

-Nada como um sapo que literalmente vomita seus próprios filhos para animar a minha noite!- ironizo.

-Não veja por esse lado! Pense assim: nada como a complexidade da natureza, que está muito além da nossa compreensão, para me fazer pensar que tem muita coisa na vida que não tem respostas e que talvez o propósito dela seja parar de fazer perguntas bobas e começar a realmente viver.

Não posso evitar revirar os olhos de maneira dramática.

-Meu Deus, você é provavelmente a pessoa mais bizarra que eu já conheci e eu nem sei seu nome!

O estranho sorri: -Obrigado.

Cidade que Nunca DormeOnde histórias criam vida. Descubra agora