Capítulo 3- Uma Pequena Mentira

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Pelo resto da semana Ana decidiu que iria aderir ao estilo de vida vegano, motivo pelo qual, dizia ela, íamos todos os dias almoçar no mesmo restaurante. Não sabia quanto tempo essa sua fase iria durar e tinha quase certeza que o único objetivo dela era ter assunto em comum com Daniel. Eventualmente ela me contou que o conheceu em um curso de conscientização e preservação ambiental, o que é a cara dela, já que Ana adora descobrir esse tipo de evento hipster que geralmente atrai muitos homens solteiros e desocupados.

Praticamente em todas as vezes que estivemos lá, Daniel arranjou um tempinho para se sentar conosco e conversar, compartilhando suas experiências de vida, principalmente da época que frequentou a faculdade de arquitetura, antes de largá-la, coisa que temos em comum, por esse ter sido a minha segunda opção de curso em minha época de vestibular. Então começavamos a tagarelar sobre estilos arquitetônicos ou sobre se Oscar Niemeyer merecia realmente todo o crédito que lhe era dado por Brasília e Ana fitava seu suco, pensando em um modo de interagir conosco sem ter conhecimento nenhum sobre o que falávamos.

Nesse dia da conversa sobre arquitetura em específico, Ana interrompeu o assunto para falar de alguma coisa inútil sobre a qual ela sentia segurança em falar, como por exemplo aquela sua baboseira usual de signos, e de como o signo dela e de Daniel, Aquário, era tão incrível e o meu, Virgem, tão sem graça. Eu e ele rimos, não realmente ligando para o novo tema da conversa mas sem querer retirar ela de seu espaço de fala.

Ana estava realmente se esforçando para conseguir a atenção dele, e como a boa amiga que sou, percebi isso logo de cara, e uma vez até tentei deixá-los sozinhos, não indo almoçar com eles naquele dia sob a desculpa de que tinha um telefonema importante para fazer, mas pelo que fui atualizada mais tarde, Daniel fugiu, dizendo que tinha de voltar para a cozinha, deixando Ana para almoçar sem companhia. E essa foi a gota da água para ela perder o interesse.

Sei que ela nunca admitiria para mim, mas ela estava louca para levá-lo para a cama. Acontece que seu orgulho falou mais alto e ela desistiu de investir nele ao constatar o desinteresse. O lado conquistador de minha amiga não estava acostumado a ser rejeitado. Acho que ela estava com ciúmes de mim, acreditando que talvez eu estivesse interessada por ele. Até que ontem, logo antes de sairmos para almoçar, ela invadiu minha sala e disse:

-Olhe, Cat, você pode ficar com ele. Meu interesse já está passando mesmo, ontem conheci um argentino de olhos verdes e agora meu foco está nele. Pode almoçar sozinha com Daniel hoje, prometo não entrar no caminho de vocês dois.

De primeira, eu obviamente neguei a oferta e afirmei não estar nem um pouco interessada por aquele cara. Para provar o meu ponto até mesmo me recusei a ir ao restaurante dele sem a companhia de minha melhor amiga, dizendo que eu só ia lá por causa dela, o que no princípio não era mentira. Ana fingiu estar de acordo e  pareceu indiferente à minha decisão, o que conhecendo-a há anos estranhei, mas só mais tarde, quando Daniel apareceu no escritório, que entendi que ela havia esquematizado um plano sem meu consentimento.

Ela ligou para ele, disse que não iríamos almoçar hoje lá porque eu estava com problemas de saúde, mas que era teimosa demais para ver um médico. Assim, logo depois da hora do almoço, nem sei como expressar minha surpresa quando voltei do banheiro e encontrei um homem alto, de cabelos escuros e olhos cor de avelã, aguardando por mim com a feição ríspida e com um capacete de moto nas mãos.

-Daniel?

-Vim te levar ao médico- disse e me estendeu aquele capacete horroroso.

Minha confusão foi genuína.

-O quê?

-Ana disse que você estava doente e que se recusava a ir ao médico. Ande! Estamos indo agora- ele gesticulou com a mão para que eu me apressasse.

Desatei a rir. Parcialmente de nervoso.

-Não estou doente, Daniel! Não sei por que Ana te disse isso.

Mas eu sabia exatamente o por quê. E ele também.

-Não está? Mas ela já até falou com sua chefe, disse que você tiraria o dia de folga por motivos de saúde.

Arqueei as sobrancelhas, inconformada e desejando tirar satisfações com Ana.

-Aquela desgraçada...

Ficamos nos encarando por um tempo, sem saber como proceder. Daniel quebrou o silêncio:

-Bom... Já que você tem o dia livre e eu também, o que você acha de fazermos alguma coisa?

Automaticamente recusei:

-Acho melhor não. Não é certo, tenho que trablh...

Ele me interrompeu:

-Na verdade, não. Supostamente você está doente. Aproveite. Tenho quase certeza, pelo pouco que te conheço, que você nunca fingiu estar doente em toda sua vida para fazer algo que te agrade. Estou certo?

Nem precisei pausar para refletir pois não havia como negar minha personalidade estritamente profissional.

-Sim...

Sua resposta foi rápida:

-Então, vamos. O que está esperando?

Tudo o que conseguia pensar era naquele capacete horroroso e assustador de moto que ele carregava consigo.

-Nós não vamos a lugar nenhum sob duas rodas, né?

Daniel riu.

-Por quê? Não vai me dizer que logo você tem medo de alguma coisa?

Aquela diversão tão característica dele com tudo voltou a dar as caras através de um sorriso torto e provocativo.

-Não é medo, é apenas valorizar a minha própria vida!

Ele riu novamente.

-Eu não sou um completo irresponsável- Ele ergueu o capacete. Como se para provar aquela ideia.

Não pude evitar de rir e cruzar os braços, fiel ao meu julgamento:

-Nem sonhando.

E novamente aquela risada boba e contagiante e insuportavelmente leve.

-Vamos logo, Catarina! Já que prefere, podemos fazer um passeio a pé, mas não vai ser tão divertido...

Cidade que Nunca DormeOnde histórias criam vida. Descubra agora