Já passa de 16 horas e eu não consegui escrever um parágrafo coerente para meu projeto de literatura. Nesse período, vai ser o trabalho mais importante, e como sempre fui meio maníaco por ter tudo sob controle, estou um pouco preocupado. Apesar de ter me esforçado muito mais nas ciências exatas, e achar que meu talento mesmo é nas artes, o que eu faço melhor é escrever. Desde mais novo, sempre odiei raciocínio lógico – porque a lógica na minha cabeça é um pouco não-tão-lógica na cabeça de todo mundo. Ainda lembro que na pré-escola, queriam me ensinar a contar usando palitos de picolé – uma atividade com pouca probabilidade de dar errado, né? Deram dois palitos pra um aluno e três pra outro. A ideia era que se déssemos um palito dos três para o colega, ele ficaria com mais e nós com menos. Matemática seria simples e divertida, dizia a professora.
Mas não para o pequeno Frederico. Por que eu ia dar um palito para meu amigo, se é muito mais mágico mergulhá-lo na tinta colorida e descobrir quão parecido é o gosto da cor rosa-choque, com a cobertura de bolo de morango, da mesma tonalidade? E qual seria o gosto de azul? Não podia mais esperar, precisava experimentar! Quando fiz que ia engolir o primeiro monte de pigmento róseo, que infelizmente estava perto demais de mim, a tia chegou perto bem nervosa. "Por que você colocou na tinta, Frederico? É só para trocar palitos com seu amigo, nada de enfiar o palito nas coisas... ei, estou conversando com você!" – ela tomou o outro palito, agora mergulhado na tinta verde e prestes a ser sorvido pela minha boca faminta por descobrir o sabor das cores. Ela jogou os palitos sujos de tinta no canto do tapete emborrachado, e me afastou de qualquer possibilidade de fazer bagunça com tinta. Mas quando a professora pensou que tudo estava sob controle, o meu coleguinha já tinha se interessado pela minha ideia, e estava com a boca melada de tinta rosa. Parece que o cheiro adocicado da tinta atóxica era desejável demais, por que em pouco tempo, os outros garotos estavam fazendo bagunça pela classe, trocando palitos melados de tinta e sujando-se com purpurina. Enquanto a educadora tentava controlar as crianças e evitar que todas engolissem tinta, eu já tinha perdido o interesse. Estava olhando para o desenho na parede, admirado com como aquele monstro (que na verdade era a pintura de um duende muito mal-encarado) podia ser malvado se tinha olhos tão carinhosos e brilhantes.
Comigo a coisa a ser esperada nunca era aquilo que se recebia. Vários professores até indicavam constantemente que fizesse acompanhamento psicopedagógico, mas esses profissionais sempre achavam que tudo que eu fazia era normal. Acho que me sentia meio com vergonha e medo deles, na verdade. Como se usasse máscaras e tivesse uma personalidade para cada situação. Eu me sentia bem, e era familiar com todas essas personalidades convivendo em um só personagem.
Mas agora, não consigo escrever. Minha cabeça está perdida, ocupada demais com lembranças de ontem, e da surpresa de finalmente ter estabelecido contato com Victor. Tinha passado a maior parte do dia com ele, e para minha grande surpresa, era um garoto bem divertido. Uma pena que não me encontrei com a Jacque, para apresentá-los direito. Ela iria adorar conhecer meu parceiro de Geometria! Ah, falando nela, acabei de receber uma mensagem sua no meu celular. "Freddy, você não esqueceu que hoje é aniversário do papai, né? O jantar começa às oito horas. Um beijo, amo você". Ela tinha mesmo me convidado para essa pequena reunião da família dela. Só irão alguns colegas do trabalho dele e suas famílias. A minha também foi convidada, mas preciso confirmar com eles se realmente irão.
Mamãe é um anjo na terra, e papai – apesar de parecer aqueles mafiosos de filme cult – é um sujeito gente boa. Estão sempre ocupados com trabalho e suas ações sociais. Aprendi com eles que devemos sempre celebrar nossa saúde e disposição compartilhando-as com os outros. Desde meus 8 anos, fazemos trabalho voluntário no lar para idosos da nossa cidade. Todos os senhores e senhoras que moram lá foram abandonados por suas famílias, e muitos deles nem se lembram onde estão. Mas são seres humanos, e tudo que precisam é de um pouco de atenção. Ninguém parece os levar a sério, porque de vez em quando falam coisas meio sem sentido, confundem-se e trocam nomes. Mas quando você se acostuma com rotina e hábitos de cada um, eles todos se tornam sua família.
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Aquarela
RomanceFrederico é um garoto muito criativo. Com apenas seus 15 anos, já está no último ano do colegial. Namora com a aluna que dá monitoria, e é a mais inteligente da escola (ele acha). É talentoso e esforçado, apesar de detestar matérias exatas. Tem aver...