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Silêncio e quietude

   Tudo ocorreu em um instante.

   Quando Átila entendeu o que acontecia, o monstro feito de carne decomposta e penas negras já estava em direção a Marco. A sua primeira reação foi afastar-se do local de colisão; deu dois passos para trás, tão depressa que cambaleou, perdendo o equilíbrio, e caiu com a bunda no piso seco. E dali, vislumbrou o ser ir de encontro ao amigo, soltando um grito que ele não sabia até que ponto era humano ou um gralhar de um urubu.

   Marco tentou escapar, mas as garras pontiagudas do espectro foram cravadas em seus ombros, fazendo com que ele colidisse com a parede e caísse no chão. Com o bicho sobre seu tronco, começou a gritar desesperadamente, o que fez Átila lembrar-se dos gritos de Dai correndo soltos pelos cômodos. Não tinha mais dúvidas, aquilo era o assassino de sua amiga.

   — Socorro! — Marco brandiu, lutando contra as garras próximas ao rosto.

   Contudo, não conseguiu lutar por muito tempo. As garras rasgaram sua camiseta e, como se deslizasse sobre a água, deslizou facilmente sobre a pele que cobria o seu ombro e seu peitoral. A carne foi exposta de forma imediata, o sangue minou e escorreu para os lados. Marco gritou de dor e o monstro, como se se alimentasse do sofrimento, gritou de prazer.  

   Átila olhou para os lados, buscou um objeto que pudesse usar para se defender, porém, a noite a cobrir a cidade tapava tudo em volta com um breu absurdo. Mas precisava fazer alguma coisa! Ergueu-se do piso e correu até a cozinha, enquanto o grito do amigo o acompanhava, alto e angustiante. Sentiu a pressão do momento amassar o coração de encontro às costelas. Tentou não pensar no que poderia estar acontecendo, e correu até o armário. Escancarou o máximo de gavetas que encontrou e, então, apossou-se da melhor arma: uma faca. Empunhou firmemente o cabo branco e, determinado, retornou para a sala a passos largos.

   Chegou ao cômodo a tempo de presenciar mais um golpe. Ainda pior dessa vez. Como se Marco já estivesse morto e fosse apenas uma carcaça prestes a apodrecer, o bicho levou o bico curvado de encontro a sua garganta. Não tinha como escapar. A mordida arrancou-lhe a pele do pescoço, desfigurando parte do queixo do garoto, que urrou, sentindo uma mistura de dor, raiva e medo. E enquanto chorava, o ser cravou ainda mais as garras em seu tronco, como se afirmando que ali seriam seus últimos segundos. Engoliu o pedaço arrancado e voltou a atacar, sedento pelas primeiras camadas de músculos.

   Átila atacou por trás. Segurando a faca com as duas mãos, cravou-a no meio das costas da criatura, entremeio ao vestido em trapos e penas; fundo o bastante para que uma onça fosse derrubada com o golpe. O ser, entretanto, pareceu mais resistente que a maior fera das Américas. Grunhiu, sentindo dor e irritação, e encarou seu algoz; os olhos mais negros que qualquer noite sem luar, mais profundos que a maior das fossas.

   E, então, alçou voo, pouco se importando em remover o objeto cravejado  em suas entranhas. Planou sobre suas cabeças por um tempo e foi se esconder nas sombras dos corredores do segundo andar. Os urubus — os fiéis escudeiros — pousaram novamente no corrimão, atentos a tudo. Uma guarda de excelência.

   — Áti… — Marco chamou, de forma engasgada.

   Só então ele se deu conta da gravidade. Marco sangrava aos montes, o líquido rubro já começava a serpentear os espaços entre os azulejos do chão, formando dezenas de córregos e rios que não tinham para onde desaguar.

   — Ah, meu Deus… — Ele agachou. As mãos levantadas no ar, sem saber o que fazer, nem onde começar a estancar o sangramento generalizado. — Ah, Marco. Porra!

Mansão dos UrubusOnde histórias criam vida. Descubra agora