"Não confunda borboletas no estômago com simples fome. Na maioria das vezes, é isso."
- Swaami Paatra Shankara.
FILHA DA PUTA.
Esta era a primeira frase genuinamente verdadeira que eu, em meus calejados dezoito anos (e nove da mais bela confusão mental), dizia em alto, nítido e bom som para minha pequena e meu melhor amigo, respectivamente, Camila e Kurt, em três anos de convivência diária.
Kurt exibiu seus dentes branquíssimos pelo retrovisor.
— Algum problema, Hector?
Todos, eu queria dizer.
Mas Carlos Fernandes (ou Kurt, como ele gosta de ser chamado, numa "humilde" comparação de si mesmo com o líder do Nirvana) é um desses tipos de caras que quando você diz "quebrei a perna nas férias", ele vai sorrir como se soubesse de todos os segredos desta terra e de outras e irá lhe dizer com a maior pachorra "ah, isso é fichinha perto do que aconteceu nas minhas férias" e começará um emocionante monólogo - pelo menos para ele - sobre quando estava esquiando em uma montanha qualquer na Suíça e quebrou duas costelas, fraturou a mandíbula, torceu o dedinho e ainda conseguiu o número de uma enfermeira bonitinha.
Entretanto, fui impedido de fazer a burrice de dizer o real motivo da minha tristeza repentina pelo sorriso escrachado, dentuço e zombeteiro estampado na folha de papel branca, cuja palavra "desaparecida" em letras pretas e garrafais parecia querer tirar uma com a minha sanidade mental.
Sou o tipo de pessoa que quando você está fodido na vida e precisa de um consolo, seu melhor amigo vai sorrir e apontar de uma forma não tão discreta, enquanto sussurra em seu ouvido com uma voz mais adocicada que o normal:
Pelo menos você não é o Hector Clemens.
Há nove anos meu irmão Ethan desapareceu. Eu, Arthur Crispim (meu melhor amigo na época) e uns garotos da rua estávamos jogando bola no gramado, o que era basicamente tentar acertar o gol feito de chinelos velhos no quintal (sem acertar as rosas do jardim, ou pior, deixar a bola cair no quintal da Dona Ana), enquanto Ethan dormia tranquilamente dentro de seu carrinho de bebê na varanda e mamãe fofocava ao telefone com a Sheila, sua cabeleireira, sobre mais uma das peripécias de Sol, uma bela moça que toda a vizinhança acreditava se prostituir.
Naquela época eu nem sabia como alguém se prostituía.
Foi numa fração de segundos. Arthur chutou a bola com muita força e ela sobrevoou a minha cabeça, como se fosse um avião planando no céu azul, indo na direção do quintal perfeitamente germinado da velha Ana. A idosa, com uma cabeça tão branca quanto um algodão e um mau humor diário desde o fim da Segunda Guerra Mundial, odiava qualquer criança, por mais comportada e quieta que fosse; principalmente quando bolas de futebol magicamente aterrissavam em sua roseira perfeita.
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Borboletas no Estômago
RomantikO ano é 1992. A cidade é São Paulo. E Hector Clemens sabia como evitar muita coisa. Evitava seu padrasto abusivo, o desaparecimento sem explicação do irmão, a crise de choro diária de sua mãe, os gemidos da irmã mais velha, o melhor amigo tóxi...