São Paulo, Santa Efigênia. 2084.
Sandra se apresentou muito bem, mesmo na redundância das credenciais já lidas pelo anfitrião e que foram somadas a um gracejo elogioso bem recebido pelo auditório acostumado com gracejos, reafirmou com boa entonação o assunto que constava na enorme tela projetada atrás de si parecendo iniciar uma apresentação de excelente aproveitamento. Só fez iniciar com o entusiasmo de querer porque perdeu o significado do que fazia na segunda frase. Soltou a terceira como se fosse uma desculpa pela estética quebrada, por desistir do ideal, por ser fraca ou pela fraqueza de tudo aquilo, pela insignificância da vida, por qualquer coisa que desse errado. "Perdão a todos" (sic). "Sinto muito..."
Caminhou pelo palco atravessada de olhares pontiagudos nas costas. A coluna endurecida com gelo mortal, o rosto em fogo, a nuca retesada chamuscando os cabelos com um tipo de tragédia. Andou muito até que doeu a sola do pé. O sapato ficou fino de um momento para outro. Fino e duro. Até um frio queria entrar pela sola. Doía muito e pensou em sentar na calçada, porém fez assim; falou para si mesma dos prisioneiros na Rússia. Nem doía muito, era bem possível caminhar daquela maneira ou não teriam sobrevivido os prisioneiros dos Gulags, no gelo da Sibéria, escavando a terra com gelo, com fome, frio por dentro e gelo por fora e tudo muito duro. Ela estava era bem.
Trariam outro para falar, logo esqueceriam aquele dia, apagariam de suas memórias, de suas agendas e do mapa. Viria alguém que precisasse menos, mais livre falava melhor. Agradaria com uma conversa necessária e com o protocolo que ela não conseguira cumprir. Para conformar-se começou a pensar na ideia; fosse uma condição física não poderia se culpar. Era algo assim, da genética dos que não falam, precisava fazer exames de sangue, ouvir um diagnóstico.
A essência das coisas sugeria que havia outras acontecendo por trás de si, agora cansada de querer saber como era tão idiota, com fome de não ser alguém que precisasse comer todo dia, de não ser alguém que tivesse tão pouca resistência nos pés quando não havia lugar destinado a esconder sua vergonha e por isto não podia parar de andar, cansada de querer saber tudo o que acontece por cima, por dentro, por fora de cada 'não'. Não. Não. Não!
Os pensamentos foram repetindo uma mesma cena entre as aleatórias e se fixaram na lembrança da professora em frente as carteiras na sala de aula, ouviu e reouvia agora de alguma forma a voz da professora déspota em sua própria aula e dizendo que naquela música havia uma frase perdida, pois era rock e no rock é normal que algumas frases se percam.
— Sandra, sua vez, qual a ideia que o autor quis transmitir no terceiro verso da música?
O cérebro, para naturalizar e diluir a vergonha da sua catástrofe, revisitava agora tudo o que se impunha como 'normal'. Tivera dificuldades de ver aquele conjunto de cadeira e mesa nas salas de aulas quando estudante, uma coisa estranha que todos chamavam de 'a carteira', que tinha a parte onde por o caderno meio de lado e era fixa à cadeira por este lado, sua cabeça teimava em associar de forma agressiva a uma mesa ginecológica. Imaginava onde estaria a professora no momento, abraçando algum amor, chorando na cama, hoje não lembrava o rosto dela. Será que já encontrou seu olhar, suas músicas em inglês, "seu olhar perdido como sempre desconfiei e nunca pude crer". Para algumas pessoas as perdas nunca serão normais e para Sandra nunca seria. Aquela professora tinha um olhar de perdas.
Na miséria Siberiana que era a dor nos pés e o caminhar como obrigação de fuga, a professora estaria salva, ainda que com seu problema de interpretação das ideias e sua arrogância, vivia muito melhor como uma vencedora. Se passasse agora dentro de um carro novo, os pés a salvo, a professora veria uma mulher andando já o dia inteiro e que perdera uma vida diante de sua plateia e que agora virava o rosto para não ser reconhecida.
Perdera da boca para fora, estava ainda viva, mas do que valia? Parecia perdido da mesma maneira. Haveria outros tipos de talentos. Não sabia pintar uma tela, porém talvez aprendesse um instrumento musical. Se fosse uma psicopata o assassinato seria seu talento, quanto ao ódio não tinha dúvidas. Talvez o suicídio como notícia romântica e apaziguadora que soaria muito bem para todos que a haviam conhecido. E se fosse uma psicopata? Se por exemplo, quando aquela professora que mal compreendia uma poesia passasse num carro novo vitoriosa dando um 'rolê na night' e ela pedisse uma carona e a assassinasse, e se suicidasse em seguida como um ato de autocompensação para o criminoso ódio, ficaria tudo quites, ela, a vida, e a justiça. Quer saber de uma coisa? Só de pensar isto já era uma psicopata, e havia acabado de pensar, de planejar um homicídio, e isto era uma prova incontestável dentro dela. Alguma coisa mudava nos músculos da garganta, um grito que não podia ser ouvido porque nunca é emitido, mas a maioria das pessoas ouvem os berros de sociedade doente reconstituídos pelos jornais que sobrevivem de vendê-los.
— Quer saber de uma coisa? Tenho a prova concreta de que a vida de ao menos uma pessoa está correndo perigo, aquela megera maldita....
A noite fria repleta das luzes insensíveis dos postes apertava seu peito como se cada lâmpada como indício de um foco ou olho social a desprezasse, "não queremos você aqui", elas diziam. Seus pés doíam como fogo por ter andado tanto, o dia inteiro no sapato de salto. Ao menos existe o sentido de salvar a humanidade se pulasse o viaduto.
— Salvo este mundo da psicopata que me tornei... sempre fui, né...
Começou a caminhar como se marchasse com as mãos corrigindo as dobras do tailleur que vestia conferindo a perfeição do caimento da roupa antes de entrar à frente do público imenso e invisível no ar da noite, ajeitou o cabelo, e partiu para a beirada. Neste momento o vento trouxe as vozes das crianças que brincavam no pula-pula instalado na cobertura de um prédio onde comemoravam um aniversário. "Não era ela, não era ela!! Não tem nada com ela, o problema é aquele menino!"
Um susto paralisou suas pernas marchantes como se despertasse de um sono e ela percebeu pela primeira vez naquele dia que seu rosto estava molhado pelas lágrimas.
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A Crise do Futuro
Short StoryNo futuro os humanos tentam encontrar a melhor forma de suas ideias serem aceitas, porém as dificuldades também aumentam e as pressões psicológicas são assustadoras. Dedicado a todas as pessoas que tiveram a fala interrompida diante de outras pe...