O pão e a escrita

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Alguns de nós nunca precisaram lutar pelo pão. Ele estava sempre lá fresquinho na mesa. Houve quem plantasse, debulhasse, moesse o trigo para eles e eu sinceramente os invejo por isso. Adoraria ter a vida despreocupada de quem já tem tudo. Aí seria tão mais fácil.

Mas quanto a mim, além de tentar escrever, além de me rebaixar e suplicar para o rapaz do porão me emprestar o saco de magias, precisava olhar o meu fermento.

Eu o colocava para crescer dando-lhe açúcar - sim, os bichinhos gostam disso. Em minutos o alien se multiplicava na tigela. Então era a hora de acrescentar a farinha; eu tinha que sovar e sovar aquela massa até a exaustão.

Com o tempo eu fui ficando boa nisso - não posso ainda dizer que escrevo bem, mas sei fazer pão caseiro.

No final do processo eu tinha um pão quentinho saindo do forno, mas o moço do porão estava de mal comigo; suas aspirações elevadas, sua busca incessante pela transcendência não combinava com cabelos presos num coque baixo e os braços sujos de farinha.

E além disso, havia gritos demais lá fora para que eu pudesse ouvi-lo bem; havia gritos demais aqui dentro me lembrando das coisas que preciso fazer, e nem sempre faço.

Eu supliquei por um acordo, mas não tenho nem as madrugadas para dar-lhe. Elas são dos meus amantes - a música e a literatura.

O jeito que encontro é guardar o cristal no bolso e ir lapidando-o com as mãos quando sobram uns minutinhos. Saem lascas cortantes, mas tem sido o único jeito. Vou espalhando os pedacinhos pelo chão e espero que brotem - eu rezo todos os dias por isso.

Aí eu poderei ver uma flor miudinha e triste; ela contará do meu desespero e da minha solidão para meia dúzia de ouvintes desatentos.

E o perfume imaginário dessa flor é a única coisa que tem me mantido eu; mesmo quando não tenho muita certeza de quem sou de verdade.


May

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⏰ Last updated: Mar 06, 2019 ⏰

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