A minha infância

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Diante da escolha da minha mãe em seguir solteira, fui registrada pelo meu avô e na minha certidão constava somente o nome da minha mãe. Irei citar minha mãe pelo nome de Raquel agora. Ser filha de mãe solteira poderia ou não me trazer algum sofrimento? Afinal falamos de uma época onde o preconceito era absoluto e atingia a humanidade tanto quanto nos dias atuais.
Minha mãe ficou na casa dos meus avós maternos. A minha avó era responsável pelos meus cuidados enquanto ela trabalhava. Agora ela tinha uma filha para sustentar e não deixou a desejar em nada. Trabalhava horas e horas para garantir meu sustento e minhas necessidades. As poucas lembranças que tenho dessa época inicial da vida são brincando com meus avós, esperando minha mãe no portão de casa com a vovó enquanto eu ia correndo ao seu encontro quando a via perto. Ela sempre me trazia um docinho.  Eu também tenho um tio uns 8 anos mais velho e trago lembranças de estarmos brincando algumas vezes. Lembro que eu era uma criança muito chorona!
Em 1976 eu tinha 2 anos quando minha mãe começou a namorar outro moço. Vou chamá-lo  de Petruchio. Eu não tenho lembranças dele nessa fase de namoro com minha mãe.
O que sei é que ela cometera o mesmo erro novamente. Com poucos meses de namoro estava lá grávida! Novamente grávida! A única diferença é que agora se tratava de um rapaz de palavra, que também era de uma boa família, não tinha bens como o outro, mas tinha condições de dar a ela um futuro razoável. Ele a idolatrava e não exitou em pedir sua mão em casamento.
Rapidamente casaram em uma cerimônia somente civil com recepção para os familiares e amigos mais próximos. Algo simples. Uma moça que não era mais virgem não poderia casar na igreja de véu e grinalda, ainda mais porque já era mãe solteira. Eram as normas impostas pela sociedade e é claro, também era contra as normas da igreja em qualquer época.
Petruchio fez a parte dele. Assumiu a mulher que esperava  seu filho. Seria uma salvação para Raquel? Ou mais um ato impensado que traria consequências?
Para a sociedade era a solução, afinal ela passaria a ser uma mulher casada e isso era o que importava.
Acontece que no mesmo dia da festa de casamento ele mostrou suas garras de machista controlador. Ela era a noiva e também quem  estava servindo os convidados. Em determinado momento ao perceber que ela ainda não tinha servido as amigas dela que estavam lá ele a agrediu com um tapa na face! Queria humilhá - la diante de todos! Mostrar quem mandava! Quem era o "homem" da casa! Ela ao receber aquele tapa,  abaixou a cabeça e foi chorar no quarto. Foi o primeiro passo de uma vida de submissão e subserviência!
Ao final da festa fui levada para a casa da minha avó Ofélia e meu avô Onofre, enquanto isso o casal iria se estruturar. Era lá que eu morava.
O Sr. Petruchio decidiu então que eu deveria ficar ao lado da minha mãe. Foi ao cartório e fez uma certidão de legitimação. Assumiu a minha paternidade e meu deu seu sobrenome. Minha certidão original foi cancelada e passei a ser oficialmente e juridicamente sua filha. Uma nova certidão e meu primeiro trauma. Minha avó me cuidava com muito amor, carinho, mimos. Eu era muito amada e querida naquela casa com meus avós, tias solteiras e tio. Imagine, uma bebê nesse ambiente de mimos e carinhos... Mas isso não iria durar muito. Sr. Petruchio sabendo que minha avó iria resistir a me entregar a eles, levou a polícia com ele para uma "reintegração de posse" no caso o objeto era eu! Bateram palmas no portão, minha avó viu a cena, me pegou no colo. Meu avô ao lado dela. Lembro como se fosse hoje. Suas lágrimas escorriam e fui arrancada dos braços dela diante   de ofensas e gritos. Tive medo! Muito medo, mas minha mãe me acolheu no colo e fomos embora.
Será que realmente ele pensava em meu bem estar ou simplesmente queria me tirar da minha avó para demonstrar poder sobre minha mãe? O que essa decisão influenciaria em minha vida?
Pelo menos eu tinha minha mãe que era doce comigo embora vivesse em um mar de amarguras. Ela foi obrigada por ele a sair do emprego e passou a cuidar da casa. Era muito caprichosa, limpa e dedicada. Nossa casa parecia casa de boneca de tão limpa e arrumada. Um capricho só com toalhas de crochê e tudo com brilho que espelhava. Sem contar os pratos que ela cozinhava que eram de encantar qualquer um pelo sabor.
Nessa casa ela apanhava do marido e da irmã dele que morava na casa de cima. Era tipo um sobrado. Essa irmã dele vou chamar de Malévola, pois eu a via como uma bruxa. Durante o dia ela agredia minha mãe. Me lembro até de um dia que elas estavam se atracando pelo cabelo e eu,  para defender minha mãe mordi o calcanhar dela. (Risos) A noite ele chegava e agredia  minha mãe, gritava como louco me batia, brigava por nada!
Ele adorava convidar amigos e parentes para comer na nossa casa e não perdia a oportunidade de humilhar minha mãe, me bater e por de castigo na frente das visitas. Acho que ele se sentia poderoso quando fazia isso. Precisava humilhar para se sentir superior.
Meu irmão já havia nascido. O Otávio. Eu estava encantada com ele e ajudava minha mãe a cuidar. Ele era meu refúgio, meu motivo para aguentar tudo aquilo. Minha mãe brincava comigo de boneca e de casinha, meu irmãozinho sempre ao lado no seu Moisés.  Mas só  quando o opressor não estava em casa, pois quando ele estava ele "cuspia fogo"  se visse essa cena. Mudamos para outra casa. Num lugar simples, uma casa simples. Não tinha água encanada ainda, utilizavam poços.
Meu irmão começou a engatinhar,  eu estava sempre com ele. O único problema é que se ele escorregasse, chorasse, se machucasse eu apanhava muito! Sr Petruchio parecia me odiar. Era o que eu sentia. Eu sofria muito vendo minha mãe ser agredida e ofendida e eu só sentia medo.
Logo minha mãe estava esperando o terceiro filho. Ela não podia tomar anticoncepcionais por questões de saúde e ele ...  Não tinha como ela planejar e evitar gravidez.
Me lembro um dia que ela estava lavando o quintal . Ele deu seu ataque de fúria e a chutou. Ela caiu, ele acertou sua barriga. Aquilo me chocou muito. Tinha medo que ele matasse minha mãe. Temia pelo bebezinho lá dentro. Lembro de rezar para o anjo da guarda pedindo por ele.
O tempo ia passando e aquela rotina era contínua. Momentos de festa, de briga, momentos de paz. Tudo em um único dia. Com novo bebê, o Fred, minha mãe não tinha tempo para se cuidar. Cuidava muito bem da casa e de cada filho, mas  andava com os cabelos sem arrumar, vestia as roupas que ele ia comprar na feira com as tias dele para ela. Tão jovem e nem podia escolher as próprias roupas. Ainda bem que as tias pelo menos obrigavam ele a comprar algo.
Com o tempo o irmão dele se casou e foi morar ao lado. Foi uma alegria, pois meu tio Arnaldo e a tia Sara eram pessoas maravilhosas, me acolhiam diante das brigas e interviam sempre que podiam. Meu tio tocava violão e eu adorava ficar ouvindo. Minha mãe jogava conversa fora com minha tia, fazia confidências e podia contar sempre com ela. Era um alívio ter eles ali!
Minha tia era tudo de bom! Eu amava ficar perto dela. Ela também sofria com ofensas do Sr Petruchio, afinal humilhar mulheres era seu hobby favorito, mas ela não ligava.
Passei momentos incríveis com ela, com minha mãe e meus irmãos longe da presença do infeliz.
Nada mudava e logo mais quando eu tinha 7 anos, meus irmãos tinham 3 e 2.  Adivinha só... Minha mãe esperando mais um bebê. Nessa época ela desconfiava que Sr. Petruchio tinha uma amante. Ela já estava de 6 meses. Eu estava ansiosa por ver o bebê. Poderia ser uma menina para me fazer companhia. Eu sonhava com ela e queria que ela se chamasse Denise. Um certo dia ele pega minha mãe e a leva com ele. Quando minha mãe voltou estava sem o bebê, eu perguntei e ela não disse nada. Só chorava. Teve uma hemorragia no banheiro e foi socorrida por uma tia e levada às pressas para o hospital. Ela havia passado por um aborto clandestino obrigada por ele e estava em choque hipovolêmico por perder tanto sangue. Poderia ter um choque séptico pelo procedimento em clínica clandestina. Não morreu, por Deus. Eu vim saber essa verdade mais tarde. Naquele momento apenas achei que ela perdeu a bebê e fiquei muito triste.
Eu estava no início da fase escolar. Tinha facilidade para aprender, porém eu não enxergava na lousa. A professora chamou minha mãe que fez uma verdadeira correria comigo a médicos. Era do oftalmologista ao neurologista. Exames em cima de exames. Óculos sem efeito. Eu era portadora de uma má formação no nervo óptico que causou nistagmo. Era congênito e naquela época não havia nada a se fazer a não ser eu me adaptar. Por isso eu sofria bulling na escola, os coleguinhas não entendiam por que eu tinha que levantar e ir bem pertinho da lousa para copiar. Mais uma vez havia em meu caminho pessoas boas e algumas coleguinhas me ajudavam. Fui me adaptando e superando. Eu adorava aprender
Logo minha mãe esperava um bebê novamente  Dessa vez ela bateu o pé e disse que iria ter o filho. Não confiou mais naquele homem  que a levou para a armadilha cruel do matadouro sem ela esperar. Ela o enfrentou e foi até o fim.
Nasceu meu irmão mais  novo, o Paulo. Era um bebê problemático, chorava 24 horas por dia. Talvez pelos traumas que minha mãe havia sofrido na gestação. Dessa vez ela fez uma laqueadura e não iria mais engravidar.
O bebê era lindo, eu revezava com minha mãe o colo para não cansar, pois ele chorava muito e era a única forma dele se calar. No acalanto do colo. Ele precisava disso. Para ele, nosso colo  era vital.
Sr. Petruchio gastou o que tinha e o que não tinha em médicos para descobrir o que o filho tinha. Até cirurgia espiritual com médium foi realizada. Não sei o que deu resultado, só sei que ele se acalmou e parou de chorar o tempo todo. Ele já tinha uns 2 ou 3 anos quando isso aconteceu.
Em meio a tantas coisas ruins essas crianças eram minha alegria. Mesmo eu levando surras e surras por eles, eles não tinham culpa. Nós brincávamos muito e tínhamos um amor imenso entre nós. Éramos irmãos unidos e nossa força era o amor.
O Sr Petruchio comprava guloseimas para eles e minha mãe tinha que me dar escondido dele. Muitas vezes ela dizia que foi ela que comeu para ele não brigar. Eu não entendia o porquê disso. Nessa época eu não sabia que ele não era meu pai biológico. Não entendia por que ele amava tanto os meninos e a mim, não! Eu tinha pessoas boas ao meu redor. A família de Sr. Petruchio era muito boa. As tias, os primos, o pai dele e a madrasta. Todos me tratavam muito bem. Eu tinha amor e carinho de todos eles. Na família da minha mãe não era diferente. Minha avó tentava de todas as formas suprir o meu sofrimento e amenizar minha dor e minhas tias eram maravilhosas! Às vezes isso causava um ciúme nas minhas primas, mas isso é normal!  Mesmo assim eu amava estar com elas. Minha felicidade era estar em qualquer lugar longe do Sr. P.
Fui muito privilegiada por Deus em conviver com as pessoas que me cercavam.
Eu já tinha uns 10, 11 anos ...

Meu bem, meu malOnde histórias criam vida. Descubra agora