Quebra de rotina

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Era ... segunda-feira... não, era... quinta-feira? Não lembrara ao certo, mas a noite estava acabando, dando início à manhã, não tão quente, não tão fria. O vento sibilava por entre sua janela como uma flauta transversal sendo tocada por um velho com pneumonia. Afastando o cobertor surrado, resmungava algumas palavras para si mesmo direcionadas à janela que atrapalhara seu sono. Como havia acordado antes do planejado, resolveu se arrumar para o trabalho com antecedência. Não que fosse mudar seu humor, mas era um incômodo a menos. Passava pela mesma rotina há tanto tempo que não sabia nem em que mês estava. Março? Maio? Agosto? Não fazia diferença, acordar, ir ao trabalho, treinar, voltar para casa. Parou de se importar com as horas após a terceira semana, pois sabia que não tinha muito o que fazer sobre sua situação. Acordava e ia direto ao trabalho, após o expediente ia para o treino e ficava lá até começar a cansar, então voltava para casa, tomava banho e ia dormir. Vestiu-se, pegou seu distintivo, suas chaves, colocou seu chapéu e saiu.
Fazendo seu caminho até seu carro a passos lentos, olhou para o céu cinza e suspirou, preparando-se mentalmente para mais um dia de trabalho. Conforme completava a primeira parte de seu trajeto corriqueiro, mantinha sempre a mesma expressão de indiferença, com o olhar pouco caído, lábio inferior relaxado, porém prestando atenção em tudo à sua volta. A cidade em que vivia não era grande, era o tipo de cidade em que todo mundo sabia quem era a pessoa apenas por descreverem apenas seu modo de andar, mas era uma cidadezinha bem desenvolvida para seu tempo. Criminalidade baixa, vias públicas bem conservadas, áreas naturais sem muitos danos críticos, e uma população relativamente grande. O prefeito? Ninguém conhecia. Mais parecia um fantasma do que um político. As coisas aconteciam, mas não sabiam como, nem quando havia sido discutido o assunto, sejam buracos em estradas ou problemas financeiros em hospitais. Isso não assustava os moradores, pois era em prol do bem-estar da cidade e não era algo recente.
Parou o carro em frente ao portão principal do departamento, colocou a chave no bolso interno de seu casaco e fez seu caminho até seu superior.

- Bom dia, garoto. – Disse o homem quase que por obrigação.

- O que tem pra mim hoje, Don? – Respondeu, por obrigação.

- O seu favorito: Relatório e depois trabalho na rua. – Falou tentando soar o mais animado possível.

- Ótimo. Me dê a parte feita do relatório e eu entrego terminado antes do fim do expediente.

Era mais um de muitos em seu histórico. Realmente era seu favorito.

- Não se afobe nesse, por favor. Não queremos perder outro da corporação por prender o homem errado. – disse Carter jogando a pasta amarela em sua mesa.

- Relaxa. Não sou como o Daegon. – Disse colocando seu chapéu no gancho ao lado da gaveta de arquivos.

- É disso que eu tenho medo, garoto. – Seu tom agora era de preocupação genuína, como a de um pai para com o filho.

Don fechou a porta calmamente e voltou à sua sala. Fez uma pequena pausa antes de alterar seu foco para a papelada recém posta em sua mesa. Ficara surpreso com o adjetivo usado por seu superior no final de sua frase. Fora a primeira vez que não o chamou pelo nome, demonstrando um pouco de afeto. Deixou isso de lado por um momento e abriu a pasta. Morte durante a noite. Um homem por volta de seus 30 anos. A causa? Tiro de pistola, certeiro na jugular do miserável. Pela foto no arquivo, não havia marca de conflito físico ou de tentativa de reagir. Dívida, provavelmente. Não era raro alguém dever dinheiro para a máfia, muito menos alguém morrer por dívidas não pagas. A máfia na cidade não era barulhenta. Agia pelo sub-mundo e não interferia nos assuntos da polícia. Claro, ainda tínhamos que limpar a bagunça deles algumas vezes, mas não era incômodo, ao menos tínhamos trabalho e nossa comissão aumentava.
Uma nota anexada à parte do arquivo pedia para o detetive encarregado do caso ir analisar a cena do crime com seus próprios olhos, e foi o que ele fez, visto que não era tão longe do departamento e era uma nota à parte das oficiais da pasta que havia recebido. Chegando no local onde o rapaz havia sido morto, não parecia muito incomum. Um beco estreito, estrutura precária e paredes de cimento com tijolos à mostra. O corpo caído, sangue em algumas partes do chão e das paredes. Cabelos curtos, ondulados, negros. Vestes comuns. Camisa branca, gravata preta, sobretudo cinza, sapatos e calças grafite. Nada nos bolsos de sua camisa e casaco, um guardanapo contendo um número de telefone no bolso dianteiro esquerdo de sua calça, documentos e chaves de sua casa, pelo que parecia, no bolso dianteiro direito. Deduzimos que fora morto logo após de sair de uma noite de bebedeira no bar local. Haviam levado sua carteira, porém deixaram seus documentos, então sabíamos que era coisa da máfia. Diferente de criminosos comuns, a máfia não acha necessário roubar até mesmo os documentos de quem devia para eles. Chaves de carro ou dinheiro bastavam para pagar suas dívidas. Eles não matam logo que não eram pagos. Primeiro advertiam, capangas baixos eram mandados para avisar que tinham dívidas não pagas e davam um novo prazo. Se não fossem pagos, visitavam a residência do endividado e lhe era dado um prazo ainda menor ou até mesmo cobrado na mesma hora. Se o indivíduo ainda assim não paga...bom...ele fica igual ao rapaz sendo investigado agora, ou pior.
Pelo ferimento, o tiro foi feito a uma distância de 3 a 4 metros de distância. O projétil atravessou o pescoço e atingiu a parede atrás do alvo. Para a perícia a limpeza seria complicada, mas para ele não seria difícil acabar seu trabalho. Após completar seu dossiê e encerrar a investigação naquele momento, relatou aos peritos e voltou para seu carro, com destino à delegacia. Antes de virar a segunda esquina, escutou pelo rádio um dos peritos lhe pedindo para estacionar na farmácia perto dali, pois precisava entregar uma coisa para ele, e assim o fez. Era um pedaço de papel. Pequeno, amassado e com letras que pareciam terem sido escritas por uma criança. "Lenora".

            -Leve isso para o Don, por favor. – Disse o legista, apressado como se a comida do forno fosse carbonizar.

Não entendeu ao certo o que acabara de acontecer, mas levaria o pedaço de papel mesmo assim, visto que havia despertado sua curiosidade.

Recados indiretos entre legistas e superiores não era algo incomum, muitas vezes era avisando sobre algo listado no dossiê que não constaria em uma segunda análise no corpo ou nos objetos encontrados no mesmo. Ele colocou o papel no bolso de sua camisa e entrou no carro. Duas quadras após a cena do crime o interior do veículo ficou estranhamente gélido e sentiu suas mãos esfriaram subitamente, então desligou o ar condicionado. A noite já estava fria, então não via necessidade de deixar ligado.
Ao chegar de volta ao departamento, ouviu Don conversar aos berros no telefone.


- Ex ligando, Don? - Disse apoiando o ombro na porta com um sorriso sarcástico no rosto.

- Quem me dera, rapaz. Eu senti falta da Rachel falando mal do meu copo sempre cheio de whiskey. Ela sempre pegava um copo pra ela e bebia comigo logo depois. - Don disse batendo o telefone no gancho - E ela nunca desligava na minha cara.

- Ela parece ser uma grande mulher. - Disse sentando na cadeira em frente à mesa de Don.

- Ela é. - Disse Don erguendo sua mão direita mostrando um anel prateado. - Ela é.

- Pra ter conseguido isso ela é mesmo. Quando aconteceu?

- Há uns 20 minutos. Ela saiu logo antes desse maldito telefone tocar.

- Eu achava que essas coisas eram proibidas durante o expediente, mas fico feliz por você. Além disso, quem diabos era no telefone? - Disse colocando seu chapéu na mesa.

- Obrigado, garoto. Proibido é, mas o segurança é muito bem fácil de persuadir. Sobre o telefone, gostaria muito de dizer que era minha sogra, mas ligação direta com o além é complicado de fazer. E confesso que acharia muito melhor se fosse isso mesmo. - Don puxou seu isqueiro e acendeu um charuto. - Vou precisar sair da cidade por alguns dias.

- Tem algo a ver com isto? - Disse puxando o papel de seu bolso e colocando na mesa.


Don cuspiu o charuto recém aceso e correu para fechar a porta. Certificando-se que todas as janelas da sala estavam tapadas por suas persianas pegou o papel da mesa.


- Quem te deu isso? - Don sussurrou olhando seriamente para o papel.

- Foi um dos legistas. Acho que era um dos novatos. - Disse espantado com o tom de Don ao perguntar isso.

- Quantas pessoas sabem deste papel? - Don disse apertando o papel fortemente em sua mão.

- Eu, você e o legista.

- Ótimo. Melhor assim.

- O que faremos com isso? O que isso quer dizer.

- Nós não faremos nada. Isso aqui não é problema seu, garoto. Me entregue a ficha do azarado encontrado no beco e volte pra casa. - Don já estava abrindo a porta do escritório.

- Se você diz, tudo bem então. Qualquer coisa já sabe. - Disse ajeitando o casaco antes de sair pela porta que logo bateu atrás dele.


Chegando em casa soltou as chaves na estante próxima à porta, colocou seu casaco em cima da poltrona no centro da sala e foi tomar banho. Saindo do banheiro colocou uma roupa mais confortável, passou pela cozinha para pegar um pouco de suco e seguiu para a sacada de seu apartamento. Após o primeiro gole de suco sentiu seu corpo se refrescar e estabilizar novamente. Olhando o céu noturno estranhamente mais azul do que preto, começou a pensar sobre o dia que passara. O corpo encontrado no beco, o papel entregue pelo legista, a mudança súbita no humor de Don ao ler o papel. Por mais que não fosse assunto dele, não podia negar que estava curioso.
Após o terceiro copo de suco, ouviu um bater pesado na porta. Ao chegar perto da porta ouviu a voz de Don chamando pelo seu nome. Na sua cabeça ele já sabia o motivo de ele estar ali, mas sabia que havia algo a mais.

Cerco KafkianoWhere stories live. Discover now