À Memória de Mário Filho

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O EX-COVARDE

Entro na redação e o Marcello Soares de Moura me chama.

Começa: — "Escuta aqui, Nelson. Explica esse mistério". Como havia um

mistério, sentei-me. Ele começa: — "Você, que não escrevia sobre política, por

que é que agora só escreve sobre política?". Puxo um cigarro, sem pressa de

responder. Insiste: — "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos

seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre

política. E, de repente, você começa suas confissões. É um violino de uma corda

só. Seu assunto é só política. Explica: — Por quê?".

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcello foi apanhar um duas

mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: —

"É uma longa história". O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do

Coutto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o

Marcello me fustigava: — "Por quê?". Quero saber: — "Você tem tempo ou está

com pressa?". Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcello já estava

insuportável.

Começo assim a "longa história": — "Eu sou um excovarde". O Marcello

ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser

canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres

anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos,

intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os

jornais e as revistas, o rádio e a TV. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcello interrompe: — "Somos todos abjetos?". Acendo outro cigarro: —

"Nem todos, claro". Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia

que se salva e só Deus sabe como.

"Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E

por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira?

Claro que não é de graça, nem por acaso.

O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os

reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados,

pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira.

Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a

igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí

para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a

"Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido,

aceitamos a impostura como a verdade total.

Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. E o medo é tão

A Cabra Vadia: Novas Confissões (Nelson Rodrigues)Where stories live. Discover now