vazia

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Inércia.

Antigamente Yan a via como a primeira das três leis de Newton, o cara chato das aulas de Física; todavia, naquele momento, ele entendia que a palavra se aplicava à sua vida.

Inércia.

Sete letras. Três sílabas. Substantivo feminino e abstrato. Lei da Física. Seu estado corpóreo às três da tarde daquele domingo.

É certo que domingos sempre tenderam a ser mais preguiçosos, dias que parar e observar o branco do teto de seu quarto, aconchegado nas cobertas azuis da cama, era semelhante a contemplação de uma obra abstrata: não compreendia o significado, em contrapartida, trazia-lhe bons sentimentos. Compreensão. Paz. Felicidade.

Era domingo, os lençóis azuis estavam limpos, a cama permanecia ali, a cor nevada de seu amparo pedia para ser apreciada... a combinação perfeita, entretanto, existia a inércia.

Sentia o frio solitário do chão tocar suas costas e não conseguia se mover. Havia o vazio. A falta de reação. Os sentimentos fundiam-se e o deixavam daquele modo. Sentia-se obsoleto. Acabado. Ferido. Quebrado.

Seus cacos e sangue sujavam o assoalho. Via-se numa poça vermelha e molhada, contudo, não conseguia sair. Experimentava uma sensação estranha, aflição em meio à uma confusão interna.

Em nada parecia com os outros domingos preguiçosos de sua curta existência terrena. Era escuro.

Escuro conforme aquela manhã. Escuro igual a camiseta usada há pouco e que saía para fora da gaveta. Escuro que nem uma noite sem lua ou estrelas... escuro como pintavam a morte.

Ouviu o telefone tocar na sala. Sua mãe sussurrava que ele não estava tão bem quanto esperava, e tinha medo... medo de seu filho não se recuperar da dor. Medo e, apesar dele, fé. Esperança de que tudo passaria.

Yan riu. Ainda paralisado, rezou para que a mãe estivesse certa quanto a isso – mesmo que seu subconsciente gritasse sobre a dificuldade que encontraria logo em frente.

Se ao menos pudesse tê-la salvado... o pensamento ecoava pelo quarto vazio.

Vivenciava a impotência de ser. Não tinha o que fazer em relação aquilo. O ponto final da situação viera e, quanto a isso, coisa alguma conseguiria ser feita. Todavia, caso pudesse mudar o curso dos fatos, escolheria não tê-la deixado cavar um buraco e enterrar seu coração sem perceber.

Teria salvo, a ela e a si.

Uma lágrima caiu enquanto imaginava como a garota o acharia patético. Homens de verdade não choram, podia ouvir a frase seguida de sua risada. Estou brincando, chorar é a mais pura demonstração de humanidade, quer dizer que não é uma máquina. A voz imaginária sussurrava para Yan, ao passo que o sorriso de sua dona brilhava em seus pensamentos.

Ele sabia que a moça acreditava naquelas palavras e, quando sentia dor, deixava-a sangrar. Significava ser humana. Queria dizer que não era unicamente mais uma garota bonita, intocada e plastificada, e sim um amontoado de sentimentos que deveriam ser respeitados; que nem sempre eram felizes, às vezes vazios, noutras, indefinidos.

Ela lhe disse que estava vazia uma vez, depois de uma briga com o pai bêbado e ferido pelo mundo. Aquilo não fez o menor sentido para Yan – e estava longe do que ele via. Todavia, o rapaz a abraçou e sussurrou que tudo ficaria bem.

Não ficou. Caso tivesse ficado, ele não estaria jogado no chão de seu quarto relembrando tudo e revisando versões diferentes para a história.

Ela lhe disse que era superficial. Entretanto, para o garoto, seus rios eram tão profundos que desejava ser o mero barco que a levaria até o oceano. Queria ter tentado ser enquanto podia. Queria ter sido mais. Ter feito mais.

Quando ela disse que estava caindo, ansiava ter oferecido mais que sua mão. Não esperava tê-la deixado encontrar conforto nos nãos que recebia da vida, embora soubesse quão complicado seria seguir assim.

Se soubesse que simplesmente dizer que ela era especial não bastaria para que o deixasse entrar... teria tentado outra forma.

O que pudesse.

O que desse.

Não conformaria com a negação, entretanto... não havia mais tempo.

Não percebeu a partida eminente. E deixou ir. Permitiu-lhe acostumar com o vazio. Sentir na solidão seu lugar favorito para estar. Aceitar que ora estava perdida, ora quebrada... e nada voltaria ao normal, que não havia salvação.

Sozinha era seu lugar favorito para estar.

E se ele pudesse mudar... pudesse apenas salvá-la. Mostrar que era tudo que desejava quando não podia, faltava tempo. Antes ela estava em chamas, agora, fria como pedra.

O amor que Yan lhe guardava não pôde salvá-la de si mesma – de seus demônios internos, lutas e dores.

A verdade incontestável é que o amor não pode salvar ninguém; não quando esse alguém nem se permite ser salvo, notou ele.

Ela disse que estava vazia, talvez não pudesse ser acudida. E possivelmente o fim fosse o socorro necessário para a garota ser livre. Yan podia aceitar aquilo.

Ainda ansiava que estivesse ali, contudo, a angústia de sua falta o acordava do delírio e mostrava que não havia como. As mensagens não seriam entregues e as ligações continuariam caindo na caixa postal.

Restava somente continuar vivendo. Tentar acreditar que, apesar da dor, ficaria bem. Estela estaria num lugar melhor e em paz. Não mais vazia, tampouco superficial ou em queda livre.

Ele tentaria acreditar nisso.

E, quem sabe, o abraço da morte tenha sido mesmo sua salvação.

~•~

*Hollow: oco, vazio. No contexto: vazia.

Baseado na música de Belle Mt, Hollow.

~•~

nota da contista:

as palavras contidas nesse conto foram escritas há uns anos e optei por não revisá-las.
peço perdão caso tiver sido equivocada em algum momento da reflexão de Yan.

e, não!
você não está sozinho nessa!
suicídio nunca é uma opção.

peça ajuda,
converse com alguém próximo ou disque 188 (Centro de Valorização da Vida).

continue a nadar.

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