Parte 1

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1.
Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá
que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não
têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios.
Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao
acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma
vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta
diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os
disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso
saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser
exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é
também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à
espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar
morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe
parecido incontestáveis. Que o antropólogo americano Buell Quain, meu
amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que
se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma
violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois
índios que o acompanhavam na sua última jornada de volta da aldeia para
Carolina e que fugir
pensando. Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a
hora certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade
do que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios e
a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem
antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretálas. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira,
também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de razões para
acreditar.
Estarei abusando da sua paciência e boa vontade, seja você quem for,
se lembrar que morremos todos? Me lembro do dia em que ele chegou à
cidade que chamou de morta nas cartas, em março de 1939, desconfiado
como você agora, a primeira vez que o vi.
Todos conheciam o ronco do hidroavião da Condor quando se
aproximava da cidade, anunciando a sua chegada. Ninguém mais nos
visitava. Muita gente correu para o rio. Eu estava ocupado com uma obra,
mas ainda pude vislumbrar no chão da casa sem teto a sombra do avião,
que sobrevoava as mangueiras a caminho do rio.
Terminei o serviço e desci até o porto. Ele posava para o fotógrafo
que o representante da agência Condor havia contratado para registrar o
acontecimento e que, com a câmera sobre um tripé, fixava para sempre nas
suas chapas a chegada do ilustre etnólogo, ao lado dos índios e do piloto,
todos de pé sobre a asa do avião. Sua vinda provocou uma sensação que
cinco meses depois todos já tinham esquecido, se é isso que você quer
saber. Nós nos acostumamos muito depressa com o extraordinário.
Só eu guardo a memória dele. Mas naquele dia nem eu nem ninguém
podíamos imaginar o que recebíamos. Veio com um chapéu branco, como
se fosse o capitão de um navio, camisa branca, bombachas e botas. Nem eu
nem ninguém podíamos ver nada por trás da elegância tão altiva e
imprópria para o lugar e a ocasião, ainda mais para quem agora olha
retrospectivamente. Ninguém podia prever a desgraça que em menos de
cinco meses lhe arrancaria a vida. Me aproximei da cena a que a cidade
assistia muda, sem entender a missão que recebia e que nenhuma alma
humana seria capaz de recusar. Eu fui essa alma. O representante da
Condor nos apresentou, mas o etnólogo não me viu. Apertou a minha mão
como a de qualquer outro e sorriu, sorria para todos, mas não notou a
minha presença. Mal ouviu o meu nome. Se o tivesse entendido, teria na
certa caçoado, porque apesar de tudo não lhe faltava humor. O meu nome é
motivo de chacota fora daqui. E ele tinha acabado de chegar. Só mais tarde
é que entenderia as circunstâncias e as vantagens de ter um aliado em mim.
Só então aceitaria a minha amizade, a falta de outra. Posso ser um humilde
sertanejo, amigo dos índios, mas tive educação e não sou tolo. Não guardo
rancor de ninguém, muito menos do dr. Buell, meu amigo, a despeito de
tudo o que possa ter pensado ou escrito e a que só tive acesso pela
incerteza das traduções do professor Pessoa a procurar nos papéis do
morto uma explicação que eu mesmo fiz o que pude para esconder. Era
preciso que ninguém achasse um sentido. É preciso não deixar os mortos
tomarem conta dos que ficaram.
Desde o início, embora não pudesse prever a tragédia, fui o único a
ver nos olhos dele o desespero que tentava dissimular mas nem sempre
conseguia, e cuja razão, que cheguei a intuir antes mesmo que ela me fosse
revelada, preferi ignorar, ou fingir que ignorava, nem que fosse só para
aliviá-lo. Acho que assim eu o ajudei como pude. Tendo presenciado os
poucos momentos em que não conseguiu se conter, eu sabia, e o meu
silêncio era para ele a prova da minha amizade. Assim são os homens. Ou
você acha que quando nos olhamos não reconhecemos no próximo o que
em nós mesmos tentamos esconder? Não há nada mais valioso do que a
confiança de um amigo. Por isso aprecio os índios, com os quais convivo
desde criança, desde o tempo em que o meu avô os amansou. Sempre os
recebi na minha casa. Sempre soube o que diziam de mim pelas costas, que
me consideravam um pouco louco, aliás como a todos os brancos.
Mas a mim importava apenas que pudessem contar comigo. E que
soubessem que eu não esperava nada em troca. De mim teriam tudo o que
pedissem, e Deus sabe que seus pedidos não têm fim. Fiz tudo o que pude
por eles. E também pelo dr. Buell. Dei a ele o mesmo que aos índios. A
mesma amizade. Porque, como os índios, ele estava só e desamparado. E, a
despeito do que pensou ou escreveu, não passava de um menino.
Podia ser meu filho. Nada me abalou tanto. Nem mesmo quando fui
destituído das funções de en
suicídio. Nada me entristeceu tanto quanto o fim do meu amigo, cuja
memória decidi honrar. Eu o acolhi quando chegou. Nada do que tenha
pensado ou escrito pode me causar rancor, nunca esperei nada em troca,
porque sei que, no fundo, fui a última pessoa com quem ele pôde contar.
Saída casa sem teto ao cair da tarde, quando uma nuvem de
morcegos também saiu do tronco oco de uma mangueira e se canalizou
pelas ruas, numa enxurrada, em vôo rasante e cego, a ignorar bicicletas e
pedestres, que também os ignoravam naquela cidade morta, como ele a
descreveu, se formos confiar nas traduções do professor Pessoa. Posso ser
ignorante, mas nunca fui supersticioso. Podia ter visto um sinal de mau
agouro na nuvem de pequenos vampiros que o recebiam. Mas tudo o que vi
foram os seus olhos quando cheguei ao rio, a expressão que assumiam, por
distração e cansaço, entre uma fotografia e outra, quando se esquecia de
que também o olhavam. Queria partir para a aldeia. Estava exausto. Queria
ficar longe dos olhares. Só você poderia ter me dito o que ele veio fazer
aqui, se veio realmente para morrer, como acabei suspeitando ao receber a
notícia do suicídio. Faz anos que o espero, em vão.
No dia 9 de agosto daquele ano, cinco meses depois de ele ter
chegado a Carolina, uma comitiva de vinte índios entrou na cidade no final
da tarde. Traziam a triste notícia e, na bagagem, os objetos de uso pessoal
do dr. Buell, que eu mesmo recebi e contei, com lágrimas nos olhos: dois
livros de música, uma Bíblia, um par de sapatos, um par de chinelos, três
pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa preta,uma toalha, quatro
lenços, dois pares de meias, um suspensório, dois ternos de brim, dois
ternos de casimira, duas cuecas e um envelope com fotografias. O seu
retrato não estava entre elas.
Havia a foto de uma casa de madeira na praia; havia os retratos dos
negros do Pacífico Sul, que lhe contaram lendas e canções; havia retratos
dos Trumai do alto Xingu, mas não havia nenhuma foto de família, nem do
pai, nem da mãe, nem da irmã, nem de nenhuma mulher. E possível que
tivesse queimado esses retratos junto com as outras cartas que recebera
antes de se matar. Os índios não tocaram em nada. Foram à minha casa sem
parar nem falar com ninguém pelo caminho — estavam com medo,
achavam que pudessem ser incriminados —, o que não impediu que a
notícia logo se espalhasse, e em pouco tempo uma pequena multidão de
curiosos cercava a minha modesta morada. Mandei chamar o professor
Pessoa às pressas, que depois de ler uma das cartas deixadas pelo infeliz,
em inglês, acalmou os índios e garantiu a todos que eles não tinham
nenhuma responsabilidade na trágica ocorrência. Ele deixou cartas para os
Estados Unidos, para o Rio de Janeiro, para Mato Grosso e duas para Caro
Una, uma para o capitão Ângelo Sampaio, delegado de polícia, e a outra
para mim.
Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria em
busca do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar e que,
por segurança, me desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não podia
compreender o que ali estava escrito — embora suspeitasse — nem correr
o risco de pedir ao professor Pessoa que me traduzisse aquelas linhas. Foi a
única que não remeti ao Rio de Janeiro. Hoje, mal se passaram seis anos da
morte do dr. Buell, e o próprio professor já se diz etnólogo e se
autoproclama estudioso dos Krahô, como se nunca tivesse passado nenhum
etnólogo por Carolina, como se bastasse a sua autodeterminação para se
equiparar ao homem que o ignorou e de quem ele diz também já não se
lembrar, pois só a lembrança já lhe faria sombra e daria os parâmetros que
lhe faltam para reconhecer a própria mediocridade e ignorância. Posso ser
um simples sertanejo, mas não sou tolo. Dos envelopes fechados, aquele era
o único cujo destinatário, até onde eu sabia, não era da família do dr. Buell
nem tampouco outro antropólogo ou missionário. Peço que me entenda.
Eram tempos difíceis. Tudo o que fiz foi por amizade, para protegê-lo. Você
não pode imaginar, seja lá quem for. As cartas seguiam para o Rio de
Janeiro antes de serem remetidas aos Estados Unidos. Nada me garantia
que não fossem abertas e lidas, como fizeram as autoridades maranhenses
ao submetê-las ao professor Pessoa em busca de uma explicação, ou que
não se extraviassem. Ainda mais se fosse instaurado o inquérito.
Guardei comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei
que ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete no
lugar da carta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o professor
Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me dirigia ou com
que objetivo, pensando que se tratava de um parente do morto, uma vez
que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever uma carta de pêsames
que decidira enviar à mãe. Nunca pude me certificar de que você tenha
recebido esse bilhete, ou que o tenha compreendido, já que não veio atrás
do que lhe pertencia. Faz anos que o espero, mas já não posso me arriscar
ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas. Amanhã pego a balsa de
volta para Carolina, mas antes deixo este testamento para quando você
vier.

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