4.
Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei
responder. Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas. No início,
deixei-me levar pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma
morte passional e concentrei a minha busca nesses vestígios. Devia haver
outra pessoa envolvida. Ninguém pode estar totalmente só no mundo.
Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos e
sentimentos. Na manhã de 8 de março de 1939, enquanto esperava as
mulas e os mantimentos para a caminhada de seis dias até a aldeia de
Cabeceira Grossa, Quain aproveitou para pôr em dia a correspondência,
sentado à máquina de escrever. Pretendia isolar-se na aldeia por um
período inicial de três meses. Não podia contar com a eventual ida de um
mensageiro ou portador nesse meio-tempo. Não pensava em voltar a
Carolina antes de junho. Li três dessas cartas. A mais longa era endereçada
a Ruth Landes, sua colega de Columbia que estava no Brasil estudando o
candomblé. Nas outras duas, ele se dirigia a dona Heloísa e à assistente
dela, Maria Júlia Pourchet, que conhecera ao passar pelo Rio de Janeiro. Na
carta para a diretora do Museu Nacio-nal, Quain tratava de questões
práticas, de seu registro junto à polícia de São Luís, de remessas de
dinheiro e dos gastos com os presentes para os índios. A Maria Júlia
Pourchet, ele descrevia, com mesuras, as primeiras impressões de Carolina.
Eu não soube da existência dessa carta até me aconselharem a
procurar uma professora de antropologia da Universidade de São Paulo
cuja tia, também antropóloga e falecida, teria visitado a mãe de Quain, nos
Estados Unidos, em 1940, pouco depois da morte do etnólogo. Consegui o
telefone e liguei para a professora, que embora ignorasse uma suposta
visita da tia a Fannie Quain logo depois do suicídio do filho, não hesitou em
me revelar o que eu mal podia supor e o que mais queria saber quando lhe
falei pela primeira vez de Buell Quain e do motivo do meu telefonema. "Ele
teve um flerte com mamãe, muito antes de eu nascer, é claro", ela disse,
assim que ouviu aquele nome peculiar.
A resposta me deixou mudo, ainda mais porque àquela altura eu
vinha tentando descobrir, em vão, o nome de uma eventual mulher do
jovem antropólogo, desde que havia batido com os olhos numa carta em
que ele solicitava ao presidente do Conselho de Fiscalização das Expedições
Artísticas e Científicas no Brasil a autorização para a sua pesquisa de
campo, ao chegar ao país, em fevereiro de 1938, e na qual se apresentava
como "casado", embora não houvesse nenhum outro indício ou referência a
mulher alguma em nenhum outro documento ou correspondência anterior
ou posterior à sua morte.
Fiquei sem ação por um instante. "Mas ele era casado!", arrisquei. Ao
que a professora replicou, entre ofendida e indignada: "Não, não era. Não
era assim que ele se apresentava à sociedade do Rio de Janeiro. E não foi
assim que se apresentou à minha mãe".
Eu achava que uma história de amor explicaria tudo. Marcamos um
encontro na universidade, onde ela me confirmou o que já havia dito no
telefone e, antes que eu pudesse tocar na carta, fez questão de lê-la em voz
alta, em inglês, intercalando a leitura de pausas e entonações para
assinalar, enquanto olhava para mim e arqueava as sobrancelhas, coisas
que a ela pareciam significativas e a mim não diziam nada:"Prezada dona
Júlia,
"Este é apenas um bilhete. Parto nas próximas duas horas para a
aldeia krahô. Estamos esperando algumas calças e camisas. Eu e um grupo
de índios krahô que estava em Carolina quando cheguei. As calças e
camisas são para eles. Não gosto de lhes dar roupas, pois ficam bem melhor
sem elas — mas eles insistem.
"Ontem à noite, fui a uma festa em homenagem a Humberto de
Campos. Houve uns dez breves discursos sobre sua vida e sua obra. Fiquei
espantado com o interesse que o povo de Carolina demonstra por tópicos
literários. As pessoas se aglomeravam nas portas e se amontoavam nas
janelas para ouvir o que era dito. Só entendi metade, mas fiquei
impressionado pelo sério interesse da audiência."
A professora também me mostrou a reprodução de um retrato de
Quain que eu já conhecia dos arquivos de Heloísa Alberto Torres e cuja
cópia ele teria dado de presente à mãe dela. Na foto, ele está de frente para
a câmera, sentado numa cadeira, de camisa branca. Tem uma expressão
irônica e desafiadora. "Há uma dedicatória no verso do original. Nada que
pudesse revelar o flerte, é claro. Naquele tempo, era assim que eles diziam.
Mamãe falava muito dele. Era um homem muito bonito, alto, moreno, um
tipo diferente do americano normal. Quando se despediram, antes de tomar
o avião, ele garantiu a ela que ia pensar no assunto. Você sabe o que eu
quero dizer, não é? Ia pensar seriamente na possibilidade de um
compromisso", ela disse, ainda sem me deixar tocar na carta.
A professora não podia suspeitar o que tinha me deixado tão ávido
por uma cópia do documento e com um sorriso irrequieto nos lábios desde
que ela começara a ler. É que, se por um lado o "bilhete" era para mim uma
decepção — ao contrário do que ela tentava me fazer acreditar, não
provava nenhuma história amorosa —, por outro eu acabava de descobrir
quem era a dona Júlia de que ele falava numa outra carta escrita na mesma
manhã, antes de partir para a aldeia, enquanto esperava as muIas e os
mantimentos, e cuja cópia uma pesquisadora canadense me havia
gentilmente cedido cerca de um mês antes. Na carta a Ruth Landes, os
mesmos fatos narrados a Maria Júlia Pourchet eram vistos com outros
olhos, e sobretudo com outras palavras, mais sarcásticas, mais verdadeiras
e mais honestas, com a intimidade, a cumplicidade e o desespero de quem
se abre com uma amiga:
"Querida Ruth,
"Carolina é um lugar tedioso — analfabetos e intelectuais. Os
intelectuais são os que usam ternos brancos e gravatas e pertencem a uma
sociedade literária. Me juntei a eles numa reunião para homenagear
Humberto de Campos, grande poeta do Maranhão. Havia dez oradores: a
vida do poeta em dez partes. Entre elas: Humberto, o moralista; Humberto,
o humanitário; Humberto, o humorista, e finalmente Humberto, o filósofo.
Tudo isso podia ser muito simpático se não fosse pela pompa ridícula. E por
fim foi .um tanto decepcionante ouvir um jovem advogado do Rio de
Janeiro (provavelmente formado no Rio ou algo assim; acho que ele é do
Norte) dizer que 'não se pode falar de Humberto enquanto filósofo sem
lembrar que ele era um grande sofredor. Humberto, o sofredor...'. E aí
revela-se que ele era um estóico, pois sorria o tempo todo. Este último
orador foi aclamado como o melhor de todos.
"Encontrei um grupo de índios krahô e eles parecem pavorosamente
obtusos. Têm cortes de cabelo engraçados, furam as orelhas e continuam
sem usar roupas nas cidades.
"Há um monte de coisas sobre os brasileiros e as cidades brasileiras
que me dão vontade de tirar a roupa e me masturbar em praça pública. Mas
tento me controlar. Seriamente, não dá para ser honesto nem mesmo com
pessoas do tipo relativamente sofisticado, como dona Júlia. E estou furioso
com você por ter falado tanto de mim para ela."
O que Buell Quain queria tanto esconder?