Ela

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Naquela manhã de sábado, ela tinha a certeza de que poderia escrever a mais triste história de todos os mundos. Mesmo daqueles que apenas latejavam dentro de sua alma, nos suores noturnos, nos sonhos dos quais pouco ou nunca se lembrava.

Espiou a chuva fina que caía atrás da janela e que mais certeza lhe dava da tristeza que também dentro de si chovia. Não se liam as horas lá fora. Tudo era cinza e mais nada. Tudo era uma certeza de sempre, como se o mundo nunca houvesse conhecido outras cores além daquelas nuances cinzentas.

Voltou os olhos para o tinteiro e mergulhou a pena, perdida em mil palavras, enquanto esperava uma gota teimosa cair. Uma música persistente acabou se derramando da mente para a folha de papel branca:
Para ir além de todos astrais
Ir além do bem dos seres normais
Ir além do trem dos animais
Tenho que apagar todos sinais
Pode ser
Só um deserto imenso, quieto,
Foi assim que eu vi
Ou melhor
A gente dar um tempo certo
Não deixar explodir
Como viver
Era pra ser um dom
Tudo de bom, tom, meio-tom, luz da manhã
Para poder parar
Para melhor parar
Para gozar, ser e não ser, filhos do Sol
Para ir além de todos astrais
Ir além do trem dos animais
Só pensar
Esse universo imenso, perto
Cintilando pra nós
Paraíso além dos animais
O planetário homem
Toda sua história
Tudo acontece agora
O sagrado instante para viver
Para morrer
O paraíso em chamas
Sobre a cabeça
Preciosa luz de glória
Onde ainda há tempo para dançar
Para brilhar

Olhou com mil olhos aquela letra de canção de um conjunto chamado 14 Bis. O nome da música era... – apertou os olhos sobre as lembranças, mas só vinham sensações e uma compreensão incompreensível sobre a canção. Além Paraíso. Uma voz sussurrou: Além Paraíso. Abriu os olhos, a pupilas se contraíram em mares verdes, sob a luz do abajur.

Estavam ali, os versos, gravados na folha. Tudo acontece agora, o sagrado instante. E era assim que se sentia. Por isso tinha a certeza de que escreveria a história mais triste de todos os mundos.

Trocou a pena da caneta, manchando os dedos de tinta, daquela vez, sem praguejar. Escolheu uma pena mais delicada. Fechou os olhos uma última vez antes de começar. No fundo havia uma certeza: toda a sua loucura poderia ser curada, se esvaziada para o papel. Criaria um mundo só seu, fantasioso – embora ela tivesse uma diáfana certeza: o mundo (os mundos!) era real. Tão real quanto a pena que esparramava uma fina linha de tinta pelo papel.

Outra canção, a mesma voz ressonando em alguma estrada longínqua da mente, das lembranças, dos sonhos. Pequenas Maravilhas, também do grupo mineiro:

Se era uma vez
Castelos de papel
Gnomos e cristais
Motivos de canções
Decerto são pequenas maravilhas
Duendes brincalhões
E desanoiteceu
Na saga dos anões
Na luz de cada olhar
Na trilha das formigas
Nas estrelas
Em cada grão
Quem descobrir
Tamanha grandeza
Verá
A tribo dançar
Ao rito da chuva
Será
A festa da terra
A nova semente
As folhas pelo chão
O branco algodão
As lágrimas de amor
As pérolas marfim
Os frutos da suprema natureza
O raio multicor
Um feixe de luar
Lembranças e quintais
E tudo que sonhar
Aviva o país das maravilhas(E amanheceu)
Cigarras e flores
Contos de fadas
Não há um bem maior
Que a pequena criança

Releu dez vezes e, enfim, teve a certeza de que havia muita coisa detrás daquelas frases. Um universo inteiro de compreensão tremulava através da tinta negra que se esparramara com tanto capricho, em letras tão habilmente trabalhadas naquela folha em branco.

Com um suspiro da mais pura desolação, Amarantha guardou as folhas dentro de uma pasta sobre a mesa e, como se aquilo não fizesse o menor sentido, empurrou-a de seu campo de visão. Por mais suave que fosse, o bip do relógio assustou-a, arrancando-a das sensações inexplicáveis que se tornavam frequentes: agonias noturnas, vozes, cores e cheiros que despertavam recordações das quais não se conseguia recordar. Paradoxos que a incomodavam. Tudo a incomodava. Tudo parecia coincidência: cada música, cada palavra, cada ruído. Como se o mundo todo tentasse lhe chamar a atenção para algum segredo. Como se a salvação do mundo dependesse dela, de alguma coisa que ela não conseguia alcançar.

Pepo ainda não chegara. Atirou-se de bruços na cama, escondendo-se da luz, dos sons lá de fora, dos anos que pesavam sobre as mãos, do medo do nada, dos seus pecados cometidos e os ainda não cometidos... E adormeceu.

Uma hora antes da aurora e do som cataléptico do despertador, Amarantha escorregou da cama suavemente, para não acordar Felipo. O sonho do qual não conseguia lembrar-se ainda assombrava a sua mente em vestígios cinzentos e angustiantes... Tentou afugentá-los com um profundo suspiro, que quase despertou Pepo – mas ele apenas se emaranhou ainda mais nos lençóis brancos de algodão. Teve inveja dele, sim, uma inveja alimentada de alguma das sensações ainda vívida dos sonhos. Um quase ódio da inocência daquele jovem guerreiro dourado, abandonado aos lençóis. Enquanto ela... Mas ela... o quê? Que fantasmas invisíveis lutavam contra ela naquele exato momento? Que louca pareceria se alguém lhe perguntasse o que estava acontecendo. Mas ela sentia o cheiro da coisa no ar.

Seguiu seu caminho silencioso até o banheiro, onde perdeu minutos infinitos, admirando suas primeiras rugas e alguns fios de cabelos brancos. Estava nua e a um passo do box. Abriu o chuveiro e deixou a água cair, com a mente perdida em algum mundo atrás de outros mundos. Quando achou que estivesse quente o suficiente entrou embaixo dela. O prazer imediato afugentou todas as incertezas, aquelas impressões más que de alguma forma arranhavam sua alma. Sentiu-se curada, molhou os cabelos longos e cacheados, acariciou a própria pele, o rosto, sentiu a textura dos cabelos molhados, abraçou-se, abandonou-se àquela aura de pertencimento que o banho dava, mesmo que efemeramente. Ela era só dela mesma. Um travo do ódio recém alimentado por Felipo entre os lençóis a fez estremecer.

Apanhou o sabonete e sentiu frouxa a aliança na mão esquerda, o que também – assim como a água quente às costas – deu-lhe prazer. Sentiu-a escorregar do anelar e não se esforçou por segurá-la. Havia uma vontade imensa de ouvir o barulho do ouro contra o piso molhado. Como se uma gargalhada sufocada quisesse vir à tona com o tilintar do metal contra a porcelana cara... e ela PRECISASSE ouvi-la cair. Despojada do ouro, mais se sentia pertencer e não conseguiu impedir a gargalhada que lutava pela liberdade dentro do seu peito quando finalmente a aliança começou a quicar pelo chão escorregadio de sabão e água. Ria, ria insanamente, enquanto a água descia por suas costas, sua barriga e suas coxas. Sentia seu corpo maior e mais denso – talvez porque molhado – sentia prazer, um prazer que não soube atribuir a nada e, finalmente, abandonou-se àquela sensação luxuriante, ampliando-a ainda mais, acariciando-se sem nenhum escrúpulo. Nem se deu conta de que estava rindo alto – era como se Amarantha dormisse dentro de uma nova Amarantha – e esta nova Amarantha é que se banhava e se acariciava, já se encaminhando ao êxtase molhado e quente do banho. As gargalhadas escoavam-se para dentro, para o útero e, aos poucos, transformaram-se em quase soluços roucos à beira das lágrimas – desta vez de prazer, em meio ao vapor que mais se assemelhava a uma bruma mágica: a grande mágica do prazer.

Felipo assistia a tudo, também em meio ao vapor entorpecente. Em suas mãos, as páginas escritas na véspera, as linhas finas e tortuosas das letras trabalhadas pela pena caríssima. Também nu, Felipo foi contagiado pela magia que aquele vapor irradiava – talvez do útero de Amarantha, talvez das palavras artesanalmente grafadas com uma caligrafia que ele sabia não ser da esposa. Entre o incômodo do comportamento atípico de Amarantha e as delícias a que a situação o convidava, Felipo optou por deixar as folhas no cesto de roupas e, sem aviso, abriu a porta de vidro do box, onde encontrou um par de olhos verdes a espreitá-lo com uma desconfiança severa, quase palpável. Mas os olhos de Amarantha eram castanhos. Castanhos muito escuros. Quem era aquela que o abraçava com uma violência muda?

Ele nunca conseguiria responder com toda a certeza. Tampouco conseguiu reagir à imprevisibilidade da situação. Sentia-se bem, o coração batendo forte, um desejo intenso pela estranha em seus braços, que o puxava para si numa urgência da qual sequer haveria sombras em suas aventuras adolescentes. Era como estar traindo Amarantha – a que dormia dentro da nova Amarantha - Nem mesmo percebeu quando seus lábios pronunciaram, com uma submissão sufocante o nome de Eme. E foi quando ele pronunciou essas duas sílabas, entrecortadas pela respiração ofegante, que o prazer explodiu dentro de seu ventre irradiando-se para o dia cinzento lá fora.


E, com uma fúria sem precedentes, Amarantha enterrou as unhas às costas de Felipo que chorava como uma criança. Os cachos loiros colados à pele dourada do rosto: ah, sim... submisso. Também ela abandonou-se ao orgasmo que subia pelas vértebras todas depois de explodir em seu útero em focos luminosos que ela, depois, jurou ver.

Então, o vazio. Amarantha adormecida, acordava dentro da Amarantha acordada, que adormecia.

O Livro das SombrasWhere stories live. Discover now