Ele

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Felipo barbeava-se, enquanto Amarantha esparramava, distraidamente, um hidratante perfumado pelo corpo. Reparou, como em todos os dias, nos últimos tempos, que a pele já sentia o peso da idade. Toda ela sentia-se envelhecer, de repente, e rapidamente. Mal ouviu a pergunta que fez Felipo repetir.

- Ontem li umas folhas que estavam dentro de uma pasta, sobre a sua mesa. Acho que não deveria invadir sua privacidade assim. Você me perdoa?

- Ahn?

- Se você me perdoa, Tata. – ouvir o apelido carinhoso, de alguma forma, fê-la sentir uma leve náusea e a incrível vontade de pedir que ele não mais a chamasse daquela forma.

- Perdoar?

Uma pontinha de impaciência surgiu em seu rosto perfeito, quando Felipo virou-se para ela, a pele cheia de creme de barbear e uma réstia de acusação no olhar escuro.

- Seus olhos são castanhos, Tata.

Ela parou de massagear a pele e cobriu-se com a toalha.

- Não quero que me chame mais de Tata. Não sou Tata... sou... – a voz perdeu-se num passado que não lhe pertencia.

- Olhe-se no espelho, agora – e agarrou-lhe pelo braço, colocando-a defronte ao espelho. Ao mesmo tempo em que se assustava com o comportamento quase agressivo de Felipo, extasiou-se diante do verde de seus olhos assombrados. – De que cor são seus olhos, Amarantha Maria? – a voz reverberou, acusatória – pelos azulejos suados do banheiro.

- Meus olhos são... castanhos. Sempre foram... – e o passado que não era seu sufocou a certeza. Amarantha tapou os olhos com a mão, sentindo-se tonta e nauseada.

- Estou grávida, Pepo. Estou grávida.

- O quê? O que disse, Tata?

Ela sentou-se sobre o vaso, balbuciando baixinho, entre soluços de espanto: - Não me chame de Tata. Meu nome é... Amarantha... Amarantha?

- O que está acontecendo com você, meu anjo? – Consternado, Felipo agachou-se a sua frente, a toalha retirando a espuma do rosto meio barbeado, a beleza irretocável da pele dourada e perfumada. – O que você disse sobre estar grávida?

- Eu disse? – os olhos, agora castanhos como sempre, perdidos na dor profunda da incerteza, buscou qualquer resposta no rosto do amante igualmente confuso. – Eu não sei o que eu disse, Pepo.

- Você disse que está grávida. Foi isso o que você disse. Tata, você está me deixando confuso. O que está acontecendo, o que você está sentindo? – beijou-lhe infinitamente as mãos que mantinha entre as suas.

- Pepo, eu estou doente. É isso. Estou doente. Tenho uma febre todas as noites, sonhos estranhos dos quais não me lembro. As coisas nunca estão onde eu deixo, vejo vultos... Tenho sempre uma sensação de tontura e ansiedade... Estou doente, Pepo... Doente...

- Talvez você esteja realmente grávida, Tata... Só isso. A gravidez mexe muito com as mulheres.

E, no fundo, ela sabia que não era só isso.

- É uma menina, Felipo. E vai se chamar Tharanis – início e fim de tudo. Seja o Vento Angai o meu mensageiro... – e um raio verde de luz derradeira cruzou os olhos escuros de Amarantha em alguns segundos que deixaram o jovem deslumbrado. Definitivamente, a mulher que ele havia acabado de possuir – ou seria o inverso? – não era Amarantha.

- Tharanis... – ele repetiu sem pensar, sacudindo a cabeça. Como um nome que invade a mente e chega à boca, onde se saboreia o estranhamento típico das histórias fantásticas. E era assim que ele se sentia, o personagem decisivo de uma trama fantástica – Afinal, quem é você? – ele perguntou, mas não sabia se para si mesmo, para Amarantha, ou para aquela nova mulher - que ele esperava, voltasse a seu leito. E nenhum dos três respondeu. Amarantha desabava, desmaiada e nua, em seus braços.

Felipo sentiu-a escorregar e quase não a pode segurar. Não porque lhe faltassem forças – muito pelo contrário – mas porque ela estivesse de um esgorregadio perfumado apavorante. Apertou-a muito forte contra si, temendo que lhe faltasse o ar. Mais uma vez a sensação do inusitado sob seus pés, fazendo-o, pela primeira vez em sua vida, vacilar. Levou-a de volta à cama de lençóis brancos de algodão e buscou com apenas uma mão os dois travesseiros robustos. Rapidamente acomodou-a, enquanto sentia a temperatura do corpo frágil cair rapidamente. Afastou algumas mechas molhadas de cujas pontas vertia água do banho. Era bela, belíssima, em sua tez quase diáfana. A respiração irregular, um suor frio que se formava sobre sua pele sugeriam mais um pesadelo do que um desmaio. Nos poucos segundos que até então haviam se passado, ainda não lhe haviam acendido as luzes de alerta e pânico que, certamente, ele esperava ver. Ao contrário, a própria serenidade o assustava. Tanto que, mais uma vez, tentou responder à pergunta, dessa vez feita para si mesmo: Quem é você?

E foi nesse estado absurdo de tranquilidade e desapego que Amarantha o encontrou, quando seus olhos enevoados puderam focalizá-lo. 

O Livro das SombrasWhere stories live. Discover now