Era como se um outro Felipo acordasse dentro de Pepo, mas ele imediatamente afastou a ideia, simbolicamente passando a mão direita à frente dos olhos num gesto de desdém. Imediatamente uma outra ideia mais pegajosa grudou-lhe na mente, escorrendo pela face até apertar o peito. De que cor são meus olhos? As palavras saíram automáticas, caindo sobre Amarantha como uma bomba.
- De que... Eles são... castanhos. São castanhos. – E só então Felipo encontrou a pergunta certa – De que cor estão meus olhos?
E aquele foi o encontro dentro de um encontro. E mesmo que Felipo lutasse
mas ele não queria lutar
contra aquilo que vinha de dentro com a força destrutiva de um ciclone, ele reconheceria estar gostando daquilo. Ele se sentia leve, compelido para fora de si, além do controle de seu próprio corpo. E foi uma única palavra
uma resposta
que desencadeou a coisa toda que, mais tarde, ele passaria a chamar de "interferência". Uma resposta
uma palavra
que ele já previa:
- Azuis. Seus olhos são azuis. Sempre foram azuis. – Amarantha ofereceu menos resistência à "interferência". Como um animal indefeso sucumbindo a um carinho. Deixou-se subir, abandonar a sala de controle de si mesma, numa deliciosa sonolência. Aquele era apenas um encontro dentro de um encontro.
Os olhos se cruzaram. Neles, a profunda dor da separação dissipava-se em réstias de sol e de lua. Nenhum dos dois conseguiu falar. Não havia palavras que pudessem traduzir o que cem anos de escuridão calou. Ainda não estavam livres. Mas, finalmente, estavam juntos. Ela tentou, em vão pronunciar o nome dele. Ele calou-a com o indicador direito. Temia
sem saber por que
ouvir seu próprio nome naquele mundo estranho, asséptico, branco, fechado. Por isso, retirou o indicador dos lábios dela, e os cobriu com um beijo quente e dourado.
Ficaram abraçados por muito tempo, até que o choro irrompeu, quebrando barreiras, destruindo trincheiras, inundando tudo, sem piedade. Soluçaram juntos, sem pronunciar palavra que fosse, nem naquela, nem na própria língua sagrada. Não era preciso.
E quando chegou a hora de acordar Amarantha e Felipo, horas haviam se passado no relógio dos mortais. Então, ela pronunciou, em sua voz doce de passarinho noturno, no dialeto sagrado da Lua
Amarantha, vekiĝu, dolĉa sonĝo de la nokto
E mergulhou para as trevas de onde, muito em breve, voltaria. Voltaria. E Amarantha soube – de alguma forma – soube disso.
Ele demorou mais. Queria ver o último raio verde nos olhos de Amarantha, antes de trazer Felipo de volta. Por isso, Amarantha ouviu quando ele disse...
Felipo, filo de Apolono, revenu. La suno jam estas alta ...
E mergulhou para as trevas de onde, muito em breve voltaria. Sim, voltaria. E Felipo também sabia disso. Amarantha, maravilhada com a forte luz azul que abandonava ao castanho os olhos de Pepo percebeu que algo extremamente fantástico acabara de acontecer ali.
E acontecera.
Era o encontro deles, neles.
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O Livro das Sombras
FantasyReunindo universos paralelos e criaturas fantásticas, o romance narra a história de uma possível destruição da raça humana, pela preservação do planeta.