O zoológico ficava longe, Lara sabia disso. Dava preguiça só de pensar no longo caminho a percorrer, mas Lara tinha uma relação especial com o zoológico, ele abrigava suas melhores memórias da infância. O avô de Lara era fã de animais, ele sempre que podia a levava ao zoológico, no fundo, ela sabia que era ele quem queria ir. Aos poucos, porém, tornou-se o passeio predileto dos dois, pois Lara, como seu avô, desenvolveu uma verdadeira loucura pelo zoológico. Para ela era incrível e extremamente prazeroso ver todos aqueles animais, comer algodão doce e passear de mãos dadas com seu avô embaixo das árvores em um belo dia de sol. Seu avô sempre apontava para o leão e dizia a Lara: Ele é o rei da selva. Ele dorme a maior parte do dia. Na vida, meu docinho, só precisamos saber a hora de atacar. Na área dos macacos, seu avô lhe dizia: Docinho, os macacos são engraçados. Eles gostam de fazer macaquices. As pessoas gostam deles, mas não o levam à sério. Seu avô, que também era psiquiatra, mostrava os animais e assim ensinava a pequena Lara coisas importantes sobre o comportamento humano e a vida. Lara, que desde pequena demonstrou possuir uma inteligência bem acima da média, absorvia toda sabedoria do seu amado avô. O zoológico era para os dois um santuário.
O avô de Lara faleceu no seu aniversário de dezoito anos. Lara o viu nesse dia, ela se lembra perfeitamente, os anos nunca seriam capazes de apagar essa memória de suas lembranças. Ele estava na cama de sua casa. Estava gripado há alguns dias, mas ninguém imaginou que fosse sério. Lara, porém, sentia há dias um nó na garganta. Ela lembra-se que em seu aniversário correu para a casa do seu avô e ficou com ele durante toda manhã conversando. No final da conversa, antes que Lara partisse, ele pegou em suas mãos e disse: De todas as pessoas que conheci em minha vida, você é minha predileta, docinho. Eu quis esperar você completar dezoito anos para ir embora. Tudo o que achei importante que soubesse, eu te expliquei. Se sentir saudades das nossas conversas, não fique triste, vá ao zoológico e lembre-se delas. Lara lembra-se que pensou em dizer ao avô que era bobagem, que ele logo estaria bom, mas alguma coisa em seu coração apertava forte e ela sabia que ele iria embora. Antes do almoço ele morreu.
Lara sempre que se sentia perdida, acuada ou simplesmente com saudades do seu avô, visitava o zoológico. De alguma forma, a maneira simples, honesta e descomplicada com que os animais levavam a vida, a acalmava. Eles vivem conforme sua natureza, pensava. Simples assim.
Lara andava pelas ruas do zoológico pensando na natureza de Samanta, Dora ou qualquer que fosse seu nome. Quantas máscaras ela usava? Quem eu encontrarei atrás dessas máscaras? Uma criança atormentada por um demônio, que mata sua família. Ela torna-se sua cúmplice. Ela mata por ele? Ela escuta seu chamado e assassina suas vítimas. Não, não. Se agisse assim, já teria sido pega. Todas as mortes, se forem realmente assassinatos, foram muito bem arquitetadas para parecerem acidentes. Uma criança atormentada pelo demônio. Que adulta ela se torna? Não se tornaria a Samanta, certamente não. Seria uma pessoa extremamente religiosa ou aficionada por demonologia. Ela poderia até se mutilar, mas a mutilação estaria ligada à expiação dos pecados, por compartilhar os segredos de um demônio. Os cortes de Samanta não são dessa origem. O Miguel acha que não foram feitos por ela. Poderia ser um demônio causando essas mortes aparentemente acidentais e reprimindo Samanta? Em tese sim, mas seria outra Samanta. A Samanta não seria quem é, se tivesse vivido tudo o que diz ter vivido. Não seria. Será que eu posso ter certeza disso? Acho que sim. Essa história do demônio é um imbróglio! Não existe a procura natural para entender mais sobre o demônio na religião, não há medo. Sim, Samanta não tem medo nenhum. Sim! Era isso que eu estranhei nela desde o início e não compreendia o que era. Ela quase morreu e mesmo assim eu nunca vi medo nos seus olhos, além disso absolutamente nada em seu comportamento denuncia medo. Ela leva sua vida como sempre levou. Não existe demônio algum. Ela está inventando. Nada a amedronta. Por que ela está fazendo esse teatro? Por quê? Será que quer enlouquecer o Miguel? O que ela tem contra ele?
A cabeça de Lara não parava. Ela já tinha se convencido de que Samanta não era psicótica e que tinha deliberadamente criado o demônio para Miguel. Em relação às mortes, Lara ainda não sabia se Samanta tinha apenas as fantasiado para enlouquecer Miguel ou se realmente tinha assassinado aquelas pessoas. De repente, veio a imagem de Samanta internada após a tentativa de suicídio. Era falsa a tentativa, certamente. Samanta teve ajuda. Os cortes também mostravam isso. Samanta tinha um cúmplice. Justamente quando esse pensamento passou pela mente de Lara, foi que ela viu duas mulheres sentadas em um banco de frente para o lago, elas estavam de costas, mas tinha certeza que uma delas era Samanta. Elas estavam sentadas encostadas uma na outra. Lara achou estranho. Uma delas virou seu rosto de lado em direção a outra, foi, então, que Lara teve certeza absoluta, era mesmo Samanta. Resolveu olhá-las de longe para ver o que acontecia. Foi, então, que Samanta levantou-se de frente para Lara, dando suas costas para o lago, mas felizmente Samanta não a viu. Lara estava bem longe perto de muitas pessoas na área da lanchonete. Samanta puxou as duas mãos da outra mulher para que ela se levantasse. A mulher se levantou e virou-se em minha direção. Era loira e bem bonita também. Samanta pegou em uma das mãos da mulher e foi a puxando em direção ao outro lado do zoológico onde ficavam as aves, os répteis, e outros animais de menor porte.
Lara não pensou duas vezes e começou a seguir Samanta e a misteriosa loira. Era uma quarta-feira fria e cinzenta e o zoológico estava vazio, por isso Lara as seguia respeitando uma longa distância. Era só não perdê-las de vista. Não tinha ninguém perto do aviário. Samanta voltou a pegar na mão da misteriosa loira e a puxá-la. Parecia que se divertia enquanto corria em volta do aviário com aquela mulher. Foi, então, que Lara viu. A mulher para de repente, puxa Samanta com força para junto de si e elas dão um dos beijos mais demorados que Lara já teve chance de presenciar. Os corpos de enlaçaram em uma dança erótica, as mãos de uma percorriam o corpo da outra e as cabeças giravam em volúpia. Lara perto da árvore observava tudo. Eu posso não saber muitas coisas de Samanta, mas sei que ela está apaixonada por essa mulher. Eu tenho que descobrir quem ela é.
Lara resolveu ficar escondida atrás daquela grande árvore, pois quando resolvessem ir embora do zoológico teriam que passar por ali e Lara teria uma chance, talvez única, de tirar uma foto daquela misteriosa mulher.
Demorou muito. Talvez duas horas. Finalmente, elas tinham saciado um pouco da sede que tinham uma pela outra. Lara de longe viu Samanta e a loira se aproximarem. Nunca tinha visto o semblante de Samanta tão feliz e descontraído. Samanta tinha o corpo relaxado, o olhar aberto e sincero e um grande sorriso no rosto. Ela realmente gosta e confia nessa mulher, pensou. Antes que elas se aproximassem muito, Lara tirou boas fotos da dupla. Elas andavam abraçadas uma a outra. Estavam matando as saudades, Lara pensou. Fazia tempo que não se viam.
Lara deixou que elas saíssem do zoológico para sair alguns minutos depois. Um turbilhão de pensamentos inundou a mente de Lara. De tudo o que pensava, uma certeza ela formou: aquela misteriosa mulher era cúmplice de Samanta.
Dentro do carro, Lara sorria. Uma luz brilhava na escuridão. Mal acreditava na coincidência de ter encontrado as duas justamente no zoológico, lembrou-se de Jung e sorriu: não existiam coincidências. Sorriu, olhando para o céu e agradeceu em voz alta.
No caminho Lara pensava a respeito de sua descoberta. Samanta gosta de mulher e provavelmente é uma predadora de homens. Isso explica muita coisa. Explica porque Miguel vinha sendo torturado. Explica a morte de Fernando, de Antônio, a ameaça de morte de Miguel. Não explica a morte de Amélia e de Raquel. Até aí, sem problemas, essas mortes podem ser uma cortina de fumaça. Tudo para nos impedir de enxergar com clareza. Tudo para que não reconheçamos a assassina. Tudo para que percamos tempo em ligar coisas que não se ligam. Tudo para nos confundir, nos desviar do que interessa, da ameaça de morte à Miguel. Sim, o foco foi sempre Miguel. Lara estava excitada com sua descoberta. Tinha que contar tudo a Miguel com urgência. Ele precisava tomar cuidado. Foi assim que pisou o pé no acelerador em direção ao Hospital Sírio Libanês.
No caminho até o Sírio, Lara ficou pensando como a descoberta daquele romance fora capaz de confirmar sua suspeita contra Samanta. Afinal, se Samanta estava apaixonada por outra mulher não tinha sentido nenhum encontrar com ela às escondidas a não ser que quisesse manter o namoro com Miguel, e alguém só manteria um namoro, mesmo estando apaixonada por outra pessoa que é do mesmo sexo que o seu, por que tem algum interesse. Samanta queria alguma coisa ainda com Miguel. Provavelmente ela ainda não tinha terminado de o aterrorizar. Agora por que ela fazia isso? Lara não sabia, mas parecia algo friamente arquitetado que contava com a anuência da amante de Samanta. Cheirava à vingança. Por quê? Lara estava decidida a descobrir. A pensar que chegou a passar em minha cabeça que Miguel pudesse aterrorizar Samanta. Quanta besteira! Ele é a vítima!
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Café Forte
Mystery / ThrillerMiguel vê sua namorada aterrorizada por um demônio. Ele não acredita, acha que há alguém por trás de tudo e resolve descobrir quem é. Nessa jornada, o ceticismo de Miguel é colocado à prova e ele descobre muito mais do que podia imaginar. Um suspens...