Adivinha quem vem para o jantar?

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Certo dia fui apresentada a um sujeito mui particular. Assim, casualmente. Não escolhi, sequer me propuseram outras opções. Me senti acolhida, nele tive a compreensão que jamais imaginei ser merecedora.

É comum da raça humana procurar um escape, um ouvinte, depósito para todas suas amarguras. Pessoas precisam que suas dores sejam lembradas. E visando me distanciar ao máximo desse comportamento, demorei a ceder espaço ao Heitor. Ah, caro leitor, perdoe meus esquecimentos! Nem fui capaz de apresentar-te ao nosso herói. Falha minha.

Voltando aos trilhos, em pouco tempo nossos laços já estavam atados. Assim como a segunda filha Bennet e seus livros, Werther e seu Guilherme, Heitor sabia me ouvir. Mas eu também era sua confessora! Relações verdadeira se mantém através dessa ponte.

Nossas conversas sempre eram a respeito das minhas relações com o mundo e como elas se davam. Eu, pessimista do jeito que sou, despejava todo estrume que apodrecia meu coração e me deixava deitada na fossa até alguém tomar coragem e usar a pá ao lado do morrinho de terra que deixei pronto. Era a falta de coragem dos outros que me desmotivava. Quando questionada se gostava de alguma coisa, ai eu respondia! Sim, eu gostava de Literatura. Ainda gosto!

"Então por que não escreve? Caso algum sujeito tome coragem e concorde, deixe suas confissões ao lado da cova, a mãe natureza pode pregar uma peça e atirar pra longe, mas nada nunca fica escondido por muito tempo! A verdade sempre vem e seus gritos morrerão, mas o eco permanecerá nas suas linhas."

E cá estou, seguindo os conselhos! Obrigada, meu H. Deixarão sua dedicatória nas páginas iniciais do meu atestado de óbito.

A relação foi crescendo e em pouco tempo minha rotina já havia abraçado esse sujeito. Dormia comigo e conversava com a lua a noite toda, lavava meu cabelo as 5 da manhã no banho, sentava do meu lado no metro, passava a catraca do ônibus comigo. Meus conhecidos questionavam meu afastamento e eu justificava que Heitor não gostava de andar em grupos. Heitor gosta apenas de mim, assim como grande parte do meu sentimental serve a ele. Nós só precisamos de nós mesmos e vocês não entenderiam.

A calmaria sempre antecede a tempestade. Minha mãe, nos poucos momentos que exercia o papel que Deus lhe deu, me pressionava a "abrir" o que sentia e voltar a ser quem eu era. Ora, nunca deixei de ser quem sou. Estou mais Eu mesma do que nunca. Depois de muita discussão ela me convenceu. OK, talvez eu devesse me sair de casa, andar no parque, praticar algum esporte, comer mais frutas. Vitamina D o remédio para tudo?

Naquela noite, Heitor brigou comigo. Por que é preciso escolher entre eles? Eu os amo igualmente: minha mãe, minha primeira casa, a razão primordial por eu estar viva; ele, meu amor. Nenhum dos dois se entendia! Heitor me procurou no dia seguinte, se escondeu entre a sombra preta do meu guarda roupa. Estava cansado, não queria se mostrar, embora eu insistisse! "Volto se você me escolher! Nós podemos viver juntos, só é preciso que me escute. Eu tenho razão, te conheço melhor do que ela. Do que todos."

Passei a pensar nisso durante semanas e aos poucos concordei. De repente passei a me desconectar com a faculdade, literatura já não tinha mais sentido pra mim; Minha mãe arranjou algo melhor a fazer, meus amigos já não se importavam com minha existência. Perdi a esperança em mim. Resumindo: tudo se foi, só Heitor permaneceu. E com Heitor eu descansaria. Passei a planejar isso.

Guardei as balas que ele tinha me dado, de todas as cores. Azul cor-do-céu, vermelho sangue, algumas tinham branco junto. Juntei todas e um copo d'água. Esse era o manual. Engoli três dezenas, assim como ele tinha ensinado. Quanto mais, melhor o passeio. Aos poucos minha visão ficou turva, OBA! Assim mesmo ele falou. Senti minha carne derreter, passar pelo colchão e se bater contra o chão. Meus ossos rangiam como os parafusos da porta escancarada, minha cabeça perdeu os sons enquanto enxergava os movimentos desesperados da minha mãe. Sorri em resposta.

Tudo bem, mãe. É com ele que quero ir. Heitor já me traz de volta.

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