Acho que se houve algum sinal para o que estava para acontecer comigo, eu o perdi completamente. Ele passou debaixo das minhas pernas enquanto eu emparelhava com uma ruiva na fila. Ela estava ouvindo Ariana Grande em um volume alto o suficiente para eu e outras duas pessoas trocarmos olhares cômicos que tanto podiam significar "é, ela vai ficar surda né?" ou "é, não temos o que fazer com nossas vidas para olhar o rabinho alheio, né?".
Não culpo essas pessoas por julgarem a menina. É inevitavel. Nossos olhos batem em qualquer objeto inanimado ou não e quando vamos ver, já estamos processando informações como um computador com algoritmos. Bibi-bop-bop. Exatamente como um computador com algoritmos. A única coisa que nos difere dos computadores, é claro, é que não precisamos ser programados para meios tão simples quanto reagir a primeira coisa que passar diante dos nossos olhos. É a forma como reagimos a essas coisas que nos difere da maquina barulhenta.
Também não julgo aquelas pessoas porque estaria sendo hipócrita. Faço a mesma coisa que elas, com a grande diferença de que sou pago por isso. Enquanto todas elas fazem isso dia-a-dia de graça, eu tenho metas a cumprir e um belo de um cheque no final do mês. Não é lá muito essas coisas, mas pra quem já não teve nada é bastante.
Eu me chamo Damian e sou um profiliador. O que significa isso? Profiliador? Bem, como te explicar isso sem ter que te dar informações demais? Vamos elaborar: eu avalio pessoas. Baixas, altas. Gordas, magras. Pessoas que compram pão e café todos os dias, pessoas que quase te levam sem querer junto com elas quando estão atrasadas para alguma entrevista de emprego ou mais um dia pachorrento de trabalho. Pense naquela pessoa que você conhece muito bem e sabe todas as manias, como um vizinho de longa data. Eu avalio essa pessoa. Se duvidar, avalio até você.
Porque nunca se sabe quando alguém próximo a você é um criminoso. Acredite, eu já estive lá. Você ficaria surpreso com as vezes em que pessoas tão normais quanto eu e você, que colocam os pés dentro da calça um de cada vez, são pegas por mim e meus colegas de outro setores fazendo atrocidades que fariam sua avó rezar duas vezes numa noite só.
Eu já fui assim como vocês (avaliadores "free-lancers"). Já vivi uma vida normal achando que podia confiar em qualquer pessoa do meu circulo pessoal, já fiz mapas astrológicos para saber o ascendente que desculpava a atitude estupida de alguém. Eu já fui que nem você e achei que o mundo era só mais uma grande bola da qual eu estou a par de tudo com apenas um clique das minhas mãos.
Tudo mudou quando fiz uma prova de treneiro para um dos maiores testes de aptidão do ensino médio para Cherryland, o TAEEMC (Teste de Aptidão Educacional do Ensino Médio de Cherryland). Todos os meus colegas de classe fizeram e alguns alunos do segundo e terceiro ano também. Eu lembro do dia que quando o fiz, cinco anos atrás, eu e meus amigos lamentamos o fato de estarmos no primeiro ano e não podermos de fato fazer valer nossas provas para entrarmos em alguma universidade futuramente.
Eu não devia ter lamentado com o resto dos meus colegas.
Era uma prova normal, com apenas algumas exceções de que era um pouco arbitraria e cheia de regularmentos. Eu tinha hora para comer, hora para me preparar e hora para sair. Sim, eu sei que a maioria das provas são assim, mas na época em que fiz eu era bastante novo e qualquer coisa envolvendo detectores de metal e imprensa do outro lado do campus era como a Disneylândia para quem nunca teve a oportunidade de ir.
O conteudo da prova em si também não era muito diferente. Começava com as matérias de lingua portuguesa e inglesa (espanhol para quem tivesse escolhido espanhol), passando rapidamente por perguntas que envolviam códigos e interpretação de texto e então seguindo para as areas da biologia, filosofia e sociologia. No final da folha eles deixavam um espaço reservado para você começar o rascunho da sua redação que você precisaria reescrever depois em uma folha destacada, sem rasuras e bem mais elaborado.
O tema daquele ano era Discriminação em meios sociais e politicos e como isso gerava sequelas na nossa sociedade. Os dois textos passados para a gente falavam sobre racismo e a dificuldade que algumas pessoas geravam na vida das outras quando não sabiam aceitar as diferenças, tornando a convivencia algo insuportavel.
Escrevi o texto que pedia para ter o minimo de vinte e quatro linhas sem rasuras e sem começar com "na minha opinião" e deixei fluir. Ao invés de apresentar soluções, fiquei prestando atenção na maioria das pessoas que envolviam aqueles casos de injuria. Comecei a descreve-los como se os conhecesse como um vizinho ou um melhor amigo e quando dei por mim, já tinha escrito as vinte e quatro linhas sem pensar numa solução. É claro que eu ainda estava na folha rascunho e podia ter corrigido aquilo em apenas duas linhas, mas não o fiz por dois motivos. Primeiro porque achava que como era apenas mais uma prova de treineiro, não valeria de nada corrigir. Segundo porque gostei do texto. Estava fluido, sincero e conciso. A minha combinação favorita.
Fui ao exame no dia seguinte para a segunda etapa da prova, agora com matérias mais prácticas como matemática e física achando que nunca mais ouviria falar naquele texto de novo. O que era uma pena porque eu gostara dele pra caramba.
Dois dias seguintes, enquanto voltava da escola para casa, meu Trívia vibrou no meu bolso informando que minha mãe queria falar comigo. Eu atendi e ela - exasperada em meio aos gritos - disse que havia chegado uma carta da agencia de segurança de Cherryland a respeito da minha redação no TAEEMC.
Foi preciso toda a calma que eu tinha para não surtar com a noticia que vinha. Não era a agencia de segurança nacional querendo interrogar um educando pelo que ele havia escrito num pedaço de papel. Eles, da agencia de segurança nacional e do FBI gostaram do meu texto da mesma forma como eu havia gostado.
E foi assim que consegui meu primeiro trabalho na vida. Sem escaladas que levariam anos até uma mudança de cargo ou pressões de aplicadores de processos seletivos. Eu tinha um cargo perfeitamente escolhido para mim.
Você deve estar pensando no quão privilegiado eu sou agora mesmo. Ó, sorte a do Damian Delgado por conseguir ingressar numa carreira de forma tão fácil que nem passar pão de manteiga. Muita sorte mesmo.
Só que não.
Eu não tenho uma vida normal. Não confio em pessoas naturalmente por conta do que faço e sempre quando tento me decepciono profundamente. Quase sempre acerto sobre quem elas são de verdade e quando isso acontece difícilmente consigo me perto delas. Eu não consigo fingir. Simples assim.
Outro motivo pelo qual venho me desgostando do que faço é minha recente missão. A última, por assim dizer. Seis meses atrás, quando uma empresa de relacionamentos adultos suspeita de estar prostituindo menores de idade para magnatas da cidade caiu na minha mesa, achei que seria só mais um caso. Apenas mais um caso comum e no dia seguinte eu poderia ter minha vida CSI e desconfiada de volta. Não foi nada disso que aconteceu.
Você se lembra quando eu te disse que qualquer pessoa dentro do seu circulo de amigos poderia ser um criminoso sem você saber? Então, isso aconteceu comigo. A diferença era que não eram apenas pessoas que eu conhecia. Era praticamente a cidade inteira.
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INTO.YOU (Gay - Policial)
ActionDamian é um jovem agente do FBI. Com dezesseis anos, conseguiu altas notas no ensino médio que chamaram a atenção de profiliadores e hoje é um dos mais importantes integrantes da força internacional de Cherryland. Em seu primeiro mês de férias, ele...