de olhos fechados, esperou que o som viesse até ela, a forma da música. nem sempre vinha quando chamava, mas naquela noite veio, e só então ela tocou.
suavemente. três notas primeiro, como Caroline ensinou há tantos anos; depois as outras. ambas as mãos agora.
Dante fizera aquela sala de estar para a grande TV onde assistia os documentários das 01h, para os sofás de veludo e para as plantas que cultivava em grandes vasos de cerâmica, mas também fizera para o piano dela, posto perto da escada e perto da porta. fizera para o piano mais do que para qualquer outra coisa, até mais do que para os livros nas estantes, aqueles livros que lhe tiravam tanto tempo. fizera para ecoar o som azulado das melodias de um canto ao outro, com clareza. ele dizia que a voz dela soava com clareza sempre, e isso ele amou de imediato naqueles tempos de flerte inseguro, quando eram jovens. e quando ela tocava, o som claro das notas fazia lembrar daqueles tempos. Dante queria que fosse sempre assim. ela também quis.
naquela noite ele não estava lá, não estava já há muito tempo, mas ela continuava grata por isso, por ele ter desenhado o lugar para orbitar em seu piano. somente esse pensamento a impedia de chorar, mantinha o luto afastado, embora não fosse suficiente para manter o sono mais próximo, nem o aperto longe do peito. naquela noite faziam três anos.
as janelas de vidro - amplas, sólidas, cristalinas - filtravam luz da lua, iluminando todo o espaço com luz branco-azulada, talvez cinza; era a única luz. ela não se incomodou em acender as luzes quando desceu, conhecia o lugar tão bem quanto ele a conhecera. eram quatro da manhã, mas o sono não vinha. a música veio.
quando fora uma adolescente ansiosa, não podia evitar bater os pés junto do toque das teclas, e isso atrapalhava em sua concentração. ela se lembrou disso, sorrindo; noites insones eram terra fértil para memórias do passado. vivera os catorze de sua juventude há trinta anos. agora os pés estavam quietos, embora descalços e frios na madeira do piso. nada mais a assustava.
verdade fosse dita, nada dos seus catorze lhe restava agora. como fora tola aquela garota, tão ousada, tão energética. quantos detalhes perdera na pressa de ser jovem e quantos erros cometera por não estar atenta a eles; nada disso lhe restava. e como fora forte aquela garota tola; naqueles tempos o fôlego não lhe faltava subitamente, o sono vinha toda noite sem remédios. disso sim sentia falta, sentia descaradamente.
sozinha na sala, junto ao piano, ela riu, lembrando de uma garota que conhecera trinta anos atrás, que usava o mesmo nome que ela, Talia de Carlo, usava as mesmas roupas, morava no mesmo endereço, respondia aos mesmos pais que ela, mas que agora não lhe equivalia em personalidade e tampouco em saúde. era justo dizer que aquela garota era a mesma mulher que agora tocava o piano?
Dante saberia dizer.
ela lembrou de tudo isso enquanto os dedos corriam, vivos por si só, tocando a composição que ela fizera para ele, e depois a que fizera para si mesma.16 DE SETEMBRO DE 2018, sem horário.
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AMORAS
Poetrybelas aos olhos, azedas na língua. se quer uma doce, escolha com cuidado. tinta forte, deixa mancha, deixa marca, é impossível de esconder. essa é uma coleção de poesias e textos que escrevi ao longo do tempo, recente ou não. algumas têm destinatári...