Pergunto agora ao prezado leitor se o que a cristandade oferece hoje aos nossos olhos não difere completamente daquilo que a Igreja era no seu princípio. E a resposta não será difícil para qualquer indivíduo que tenha os olhos abertos e não deixe idéias preconcebidas obscurecem-lhe a mente. Não pretendo entrar no exame das causas que motivaram o estado de coisas atual. Quero simplesmente fazer vivificar esse estado em nossa mente. O paganismo e o judaísmo estão fora de questão agora. Nascemos na cristandade. Na grande maioria, fomos nela introduzidos pelo batismo. O que vemos à nossa volta e onde nos encontramos é a confissão cristã. Mas esta cristandade, esta confissão de fé? O que está compreendido sob este nome, que nos apresenta? Nada mais além de divisão e confusão.
Em lugar de um só corpo, vêem-se espécies de corpos diferentes, chamando-se todos de igreja, que, para se distinguirem uns dos outros, juntam a esse nome uma denominação. Há a igreja romana, que se intitula igreja católica ou universal, que reclama para si a sucessão apostólica e pretende ser a única e verdadeira igreja. Ao lado desta encontramos, no Oriente, a igreja grega, a igreja armênia, a igreja copta e a igreja abissíma. E como se tal não bastasse, existem ainda diversas e numerosas seitas dentro dessas igrejas. A parte destas que acabamos de mencionar, vêem-se ainda as numerosas igrejas genericamente chamadas de protestantes: anglicana, luterana, reformada, presbiteriana, congregacionais, batista, metodista, etc, etc, umas submetidas ao estado e outras separadas do seu jugo. Temos assim as igrejas nacionais e as igrejas independentes, ou livres, da França, na Suíça as do cantão de Vaud, de Genebra, de Neuchâtel — sem contar, por todo o lado, com as inumeráveis seitas diversas, todas de denominações diferentes, todas separadas por divergências muito profundas e reclamando, entretanto, cada uma para si, a posse da verdade absoluta!
Não é assim? E exagerado o quadro que acabamos de esboçar? Achamos, porventura, que isso tem alguma analogia com a Igreja, tal como a vemos no Novo Testamento? Existe nas Escrituras algum vestígio de uma sanção dada por Deus a um tal estado de coisas? E essa a unidade visível? Não! Essa é a confusão visível! Tomemos, por exemplo o caso de uma cidade — Genebra. Quantos corpos religiosos ou igrejas distintas veremos ali, fundados todos sobre princípios diferentes?! Suponhamos agora que uma carta apostólica fosse dirigida "à Igreja de Deus em Genebra". Onde ia parar? E se todos os cristãos praticantes se reunissem para tomar conhecimento dela, não seria para ouvirem palavras como estas: "Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa e que não haja entre vós dissensões; antes, sejais unidos, em um mesmo sentido e em um mesmo parecer" (1 Co 1:10)? E ainda: "Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus" (Gl 5:19-21)?
A Igreja não é deste Mundo
Mas não é tudo. Como já recordei, e como era nos primeiros tempos, o Senhor disse de Seus discípulos: "Eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo" (Jo 17:14). Tal é o caráter da Igreja. Porém, que vemos nós? O que designa um grande número de corporações religiosas é o apoio que recebem dos estados e, por conseqüência, a dependência em que deles se encontram. Isto não é "ser do mundo"? Sem dúvida alguma que é! Mas a igreja romana tem pretensões ainda mais elevadas: quer dominar os reis e os príncipes — e, durante muitos séculos exerceu, de fato, essa prepotência. Entretanto, perguntamos: Querer -autoridade temporal será próprio daqueles que não são do mundo, dos que reivindicam o nome de Cristo, o nome dAquele que não quis ser Rei neste mundo (Lc 12:14; Jo 6:15, 18:36)? E que diremos do fausto mundano que impera nas igrejas romana, grega e anglicana; do fausto em que vivem os seus altos funcionários, quer numas, quer noutras — papas, cardeais, arcebispos e outros, morando em palácios, intitulando-se príncipes da igreja, recebendo vultosos emolumentos? Serão porventura esses os sucessores dos pobres pescadores Pedro e João? Isto é não ser do mundo?!