Capítulo XII

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Quatro anos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como voos de ave.

Numa doce tarde dos fins de Setembro, Gracinha, que chegara na véspera de Oliveira acompanhada pelo bom padre Soeiro, descansava na varanda da sala de jantar, estendida sobre o canapé de palhinha, ainda com um grande avental branco, tapando o vestido até ao pescoço, um velho avental do Bento. Todo o dia, de avental, através do casarão, ajudada pela Rosa e pela filha da Crispola, se esfalfara, arrumando e limpando, com tanto gosto e fervor no trabalho, que ela mesma sacudira o pó a todos os livros da livraria, o seu sossegado pó de quatro anos. O Barrolo também se ocupara, dando sentenças nas obras da cavalariça, que a valente égua da briga da Grainha em breve partilharia com uma égua inglesa, de meio sangue, comprada em Londres. Também padre Soeiro remexera, pelo Arquivo, zelosamente, com um espanejador. E até o Pereira da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois moços na final limpeza da horta, agora muito cuidada, já com meloal, já com morangal, e duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que a parra densa já recobria.

Com efeito a Torre, entre a alvoroçada alegria de todos, enfeitava a sua velhice — porque no domingo, depois dos seus quatro anos de África, Gonçalo regressava à Torre.

E Gracinha, estendida no canapé com o seu velho avental branco, sorrindo pensativamente para a quinta silenciosa, para o céu todo corado sobre Valverde, recordava esses quatros anos, desde a manhã em que abraçara Gonçalo, sufocada e a tremer, no beliche do «Portugal»... Quatro anos! Assim passados, e nada mudara no mundo, no seu curto mundo de entre os Cunhais e a Torre, e a vida rolara, e tão sem história como rola um rio lento numa solidão: — Gonçalo na África, na vaga África, mandando raras cartas, mas alegres, e com um entusiasmo de fundador de Império; ela nos Cunhais, e o seu Barrolo, num tão quieto e costumado viver, que eram quase de agitação os jantares em que reuniam os Mendonças, os Marges, o coronel do 7, outros amigos, e à noite na sala se abriam duas mesas de pano verde para o voltarete e para o boston.

E neste manso correr de vida se desfizera mansamente, quase insensivelmente, a sombria tormenta do seu coração. Nem ela agora compreendia como um sentimento, que através das suas ansiedades ela justificava, quase secretamente santificava por o saber «único», e o desejar «eterno», assim se sumira, insensivelmente, sem dilacerações, deixara apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade, também estranheza e confusão, restos de tanto que ardera, formando uma cinza fina... A sucessão das coisas rolara, como o vento às lufadas num campo, e ela rolara, levada com a inércia duma folha seca.

Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonçalo, André, que ainda os acompanhara à Missa do Galo e consoara nos Cunhais, voltou para Lisboa, para essa reforma, de que se lastimava... No silêncio que entre ambos então se alargou, corria já uma frialdade de abandono... E quando André recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ela para Amarante, onde a santa mãe do Barrolo adoecera, com uma vagarosa doença de anemia e velhice, que em Maio a levou para o Senhor.

Em Junho fora o comovido embarque de Gonçalo para a África, — e no tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com André, que chegara de Oliveira, dias antes, e contou muito alegremente do casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse Verão, como o Barrolo decidira fazer obras consideráveis no velho palacete do Largo d'El-Rei, o passaram na quinta da Murtosa, que ela escolhera por causa da linda mata, dos altos muros de convento. A essa solidão atribuiu logo o Barrolo a sua melancolia, a sua magreza, aquele cansado cismar a que se abandonava, pelos bancos musgosos da mata, com um romance esquecido no regaço. Para que ela se distraísse, se fortificasse com banhos do mar, alugou em Setembro, na Costa, o vistoso chalé do comendador Barros. Ela não tomou banhos, nem aparecia na praia, à fresca hora das barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas: — e só à tarde passeava pelo comprido areal, rente à vaga, acompanhada por dois enormes galgos que lhe dera Manuel Duarte. Uma manhã, ao almoço, ao abrir as Novidades, Barrolo pulou, com um berro, um espanto. Era a queda inesperada do Ministério do S. Fulgêncio! André Cavaleiro apresentava logo a sua demissão pelo telégrafo. E ainda pelas Novidades souberam na Costa que Sua Excelência partira para uma «longa e pitoresca viagem», a viagem a Constantinopla, à Ásia Menor, que ele anunciara ao jantar nos Cunhais. Ela abrira um atlas: com o dedo lento caminhou desde Oliveira até à Síria, por sobre fronteiras e montes: já André lhe parecia desvanecido, nesses horizontes mais luminosos; fechou o atlas, pensando simplesmente «como a gente muda!»

A Ilustre Casa de Ramires (1900)Onde histórias criam vida. Descubra agora