Capítulo VIII

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Ao fim da semana Gonçalo, que desde a visita a Santa Maria de Craquede arrastava o remorso incómodo da sua preguiça, do tão longo abandono da novela — recebeu de manhã, ao sair do banho, uma carta do Castanheiro. Era curta: — e declarava ao amigo Gonçalo que, se em meado de Outubro, não chegassem a Lisboa três capítulos do original, ele, com pesar seu e da Arte, publicaria no primeiro número dos Anais, em vez da Torre de D. Ramires, um drama do Nuno Carreira num acto, intitulado Em Casa do Temerário... «Apesar de drama e de fantasia (acrescentava) convém à índole erudita dos Anais porque este Temerário é Carlos, o Temerário, e a acção toda, fortemente tecida, se passa no castelo de Peronne, onde se encontram nada menos que Luís XI de França, e o nosso pobre Afonso V, e Pêro da Covilhã que o acompanhava, e outros figurões de rija estatura histórica. Imagine!... Está claro, o chique supremo seria Tructesindo Mendes Ramires, contado pelo nosso Gonçalo Mendes Ramires! Mas, pelo que vejo, esse chique supremo está impedido por uma indolência suprema. Sunt lacrymae revistarum!»

Gonçalo atirou a carta, gritou pelo Bento:

— Leva para a livraria chá verde, forte, com torradas. Hoje só almoço tarde, às duas... Talvez nem almoce!

E, enfiando o roupão de trabalho, decidiu amarrar à banca, como um cativo ao remo, até que rematasse esse difícil capítulo III, onde ressaltava o bárbaro e sublime rasgo do avô Tructesindo. Não, que diabo!, não lhe convinha perder a aparição da novela em tão proveitoso momento, nas vésperas da sua chegada a Lisboa, quando para a influência política e para o prestígio social necessitava desse brilho que, segundo o velho Vigny, «uma pena de aço acrescenta a um elmo dourado de Fidalgo...» Felizmente, nessa luminosa manhã, em que as águas da horta fartamente cantavam, ele sentia também a veia borbulhando, contente em se soltar e correr. Depois da visita à crasta de Craquede, a sua imaginação concebia menos enevoadamente os seus avós afonsinos — e como que os palpava enfim no seu viver e pensar, desde que contemplara os grandes túmulos onde se desfaziam as suas grandes ossadas.

Na livraria retomou com apetite, depois de lhes sacudir a poeira, as tiras da novela sobre que emperrara, naquele atarantado lance de susto e alarme — quando o vílico, o velho Ordonho, reconhecia o pendão do Bastardo surgindo à borda da ribeira do Coice, entre o coriscar de lanças empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um momento sumido na verdura dos álamos, de novo avançando, alto e tendido, até ao rude cruzeiro de pedra de Gonçalo Ramires, «o Cortador»... O gordo Ordonho então, atirando o brado de — «Prestes, prestes! que é gente de Baião!» — descambava pelo escalão da muralha, como um fardo que rola.

No entanto Tructesindo Ramires, no empenho de aprestar a sua mesnada e abalar sobre Montemor, regera já com o adail a ordem da arrancada, mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margela do poço grande. E agora, na sala alta da alcáçova, conversava com o seu primo de Riba Cávado e costumado camarada de armas, D. Garcia Viegas — ambos sentados nos poiais de pedra duma funda janela, onde uma bilha de água, com o seu púcaro, refrescava entre vasos de manjericão. D. Garcia Viegas era um velho esgalgado e ágil, de escuro carão rapado, com uns miúdos olhos coruscantes — que merecera a alcunha de «Sabedor» pela viveza e suculência do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda de falar latim mais doutamente que um clérigo da Cúria. Convocado por Tructesindo, como os outros parentes do solar, para engrossar a mesnada dos Ramires em serviço das infantas, correra logo a Santa Ireneia, fielmente, com o seu pequeno poder de dez lanças — começando por saquear no caminho a herdade de Palha-Cã, dos de Severosa, que andavam com pendão alto na hoste real contra as donas oprimidas. Tão rijamente se apressara que, desde a madrugada, apenas comera sobre a sela, em Palha-Cã, duas rodelas dos chouriços roubados. E com a sede da afogueada correria, ainda na emoção de tão amarga nova, a derrota de Lourenço Ramires, seu afilhado, novamente enchia de água o púcaro de barro — quando pela porta da sala de armas, que três cabeças de javali dominavam, rompeu o velho Ordonho esbaforido:

A Ilustre Casa de Ramires (1900)Onde histórias criam vida. Descubra agora