Capítulo VI

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A casa do Cavaleiro em Corinde era uma edificação dos fins do século XVIII, sem elegância e sem arte, pintada de amarelo, lisa e vasta, com catorze janelas de frente, quase ao meio duma quinta chã, toda de terras lavradas. Mas uma avenida de castanheiros conduzia, com alinhada nobreza, ao pátio da frente, ornado por dois tanques de mármore. Os jardins conservavam a abundância esplêndida de rosas que os tornara famosos — e lhes merecera em tempos do avô de André, o desembargador Martinho, uma visita da Sr.a D. Maria II. E dentro todas as salas reluziam de asseio e ordem, pelos cuidados da velha governanta, uma parenta pobre do Cavaleiro, a Sr.a D. Jesuína Rolim.

Quando Gonçalo, que viera da Torre na égua, atravessou a antessala, ainda reconheceu um dos painéis da parede, fumarento combate de galeões, que ele uma tarde rasgara jogando o espadão com André. Sob esse painel, à borda do canapé de palhinha, esperava melancolicamente um amanuense do Governo Civil, com a sua pasta vermelha sobre os joelhos. E duma porta remota, ao fundo do corredor, André, avisado pelo criado, o fiel Mateus, gritou alegremente:

— Oh Gonçalo, entra para cá, para o quarto! Saí da tina... Ainda estou em ceroulas!

E em ceroulas o abraçou, num generoso abraço de parabéns. Depois, enquanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das malas — gravatas, peúgas de seda, garrafas de perfumes — conversaram do calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada...

— Um horror! — exclamava o Cavaleiro, aquecendo um ferro de frisar à lâmpada de álcool. — Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de caliça, de poeirada. O Central infestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunes, Lisboa!... Mas enfim, lá combatemos bravamente o bom combate!

Gonçalo sorria, do canto do divã onde se acomodara, entre uma pilha de camisas de cor e outra de ceroulas com monograma flamante:

— E então, Andrezinho, tudo arranjado, hem?

O Cavaleiro, diante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas grossas do bigode. E só depois de o ensopar em brilhantina, de acamar as ondas da cabeleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a Gonçalo, já inquieto, que a eleição ficara sólida...

— Mas imagina tu! Quando apareci em Lisboa, no Ministério do Reino, encontrei o círculo prometido ao Pita, ao Teotónio Pita, o grande homem da Verdade...

O Fidalgo pulou, despenhando a ruma de camisas:

— E então?...

E então ele mostrara muito asperamente ao José Ernesto a inconveniência de dispor do círculo como dum charuto, sem o consultar, a ele, governador civil — e dono do círculo... E como o José Ernesto se arrebitava, aludia à conveniência superior do Governo, ele logo, estendendo o dedo firme: «Pois Zezinho, flor, ou trago o Ramires por Vila-Clara, ou me demito, e arde Tróia!...» Espantos, escarcéus, berreiros — mas o José Ernesto cedera, e tudo findou jantando ambos em Algés com o tio Reis Gomes, onde à noite, ao bluff, as senhoras lhe arrancaram catorze mil réis.

— Em resumo, Gonçalinho, precisamos conservar os olhos atentos. O José Ernesto é rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o meu génio... Mas há os compromissos, as pressões... E agora a novidade pitoresca. Sabes quem se propõe contra ti, pelos Regeneradores?... Adivinha... O Julinho!

— Que Julinho?... O Júlio das fotografias?

— O Júlio das fotografias.

— Diabo!

O Cavaleiro encolheu os ombros, com piedade:

— Arranja dez votos à porta da quinta, tira o retrato a todos os taberneiros do círculo em mangas de camisa, e continua a ser o Julinho... Não! Só Lisboa me inquieta, a canalha política de Lisboa!

A Ilustre Casa de Ramires (1900)Onde histórias criam vida. Descubra agora