Calor

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          Para muitos dos meus antigos amigos o conceito de calor seria só mais um dia de sol fervendo como todos os outros naquela cidade infernal, afinal de contas, o calor era a única estação conhecida pelo nordeste. Porém todos os dias eu experimentava vários tipos de calor:

          O primeiro era, obviamente, o clima seco daquele pedaço de fim de mundo, enfrentava o sol todos os dias para ir à escola e fazer a única obrigação qual eu tinha aos 15 anos; estudar. E na escola, próximo às salas de aula, havia um lugar perfeito para fugir dos raios de sol (e também das aulas de matemática); era o não tão famoso gramado atrás da diretoria, um lugar com grama para sentar (óbvio), sombra nos pontos certos e onde o vento fresco rodeava as árvores, tocando os muros onde eu costumava me encostar para um maior conforto.

          Era naquele lugar em que eu fugia não apenas do calor do sol, mas do mundo. Mesmo que a fuga funcionasse apenas com o calor do sol. Pois, na verdade, havia outro calor nesse mesmo local, que vinha de forma suave e calma a cada passo que Felipe dava para se encontrar comigo. Quando ele se sentava ao meu lado e me cumprimentava com um breve abraço, eu podia sentir o conforto que aquele calor específico costumava deixar.

          — Oi Lipe. - Digo o mesmo cumprimento de sempre, com o mesmo sorriso involuntário de sempre.

          — Vicky. - Ele respondia, retribuindo a gentileza num pequeno sorriso.

          Nossos dias eram comuns, eu quase nunca entrava na sala de aula e ele vinha se juntar a mim em meu esconderijo nem-tão-secreto para fugir de aulas chatas, nós dois passávamos a maior parte do tempo juntos, entre amigos ou não. E mesmo entre amigos, quando nossas pernas se encostavam ou se entrelaçavam de forma simples e confortável, éramos só nós dois novamente.

          Felipe era magro, olhos e cabelos castanhos, de estatura normal para um garoto de 15 anos, ele não é bonito quando se trata de aparência, mas sinceramente, desde quando aparência realmente importou para mim? Tínhamos nossa compatibilidade, era uma sintonia que com certeza é rara e difícil de moldar tão naturalmente.

          Belo mesmo era seu olhar, gostava da forma em que seu olhar parecia inexpressivo até mesmo quando ele sorria — tudo que me atrai é incomum, eu sei. Também gostava do seu sorriso, das suas mãos estranhas e o modo como raramente me fazia carinho. Pois ele me transmitia um calor acolhedor, e eu não entendia o que sentia até beija-lo.

          Foi um beijo tímido e suave, o selar tinha gosto de primeiro amor e a iniciativa havia sido minha, lá estava eu saboreando o gosto dos lábios do garoto que estava timidamente atrás do muro e das janelas que nos separavam da diretoria, detalhe que deixava aquele toque de perigo — pensava o eu de 15 anos.

          Descobri que o calor da timidez era um pouco desconfortável e denunciei tal sentimento com um rubor nas bochechas, mesmo feliz em ter feito aquilo.

          — Quero mais... - Ele denuncia o sabor viciante que foi deixado em nossos lábios ao nos separar-mos.

          Havia sido nosso primeiro e último beijo, porque o trauma de relacionamentos ainda me prendia na incerteza daquele sentimento, não conseguia me deixar levar pela simples emoção de estar com ele.

          Mesmo ele sendo a melhor parte dos meus dias.

          E tudo acontecia ali, naquele gramado não tão verde e nem tão vasto, onde a gente costumava sentar e conversar sobre nossos dias tão passageiros, sobre as novidades engraçadas, acontecimentos inusitados, até que o assunto abria espaço para o silêncio, onde nossos olhos se encontravam em uma comunicação não verbal.

          Achei que aqueles momentos felizes durariam por muito tempo, pelo menos até o término do ensino médio, mas algo inusitado aconteceu, quer dizer, nem tão inusitado.

          — Então você vai viajar, e não volta mais? - Lipe perguntou.

          — Na verdade vou passar só as férias na casa do meu pai. - Respondi com um pequeno sorriso. - Volto ano que vem.

          Ele virou seu rosto para o outro lado, não estávamos sozinhos então os outros garotos também pareceram um pouco confusos, aquela não era uma despedida, era apenas um tempo.

          Parecia apenas um tempo.

          — A gente vai sentir sua falta, até o ano que vem então. - Um dos garotos comentou, com um sorriso simples.

          Aquele era nosso último dia de aula antes das férias, foi só mais um dia normal como todos os outros, exceto pelo fato de que todo mundo estava trocando as aulas por um momento de descanso e zoação naquele gramado - qual não fazia jus ao nome. Brincamos e sorrimos até o fim do horário da última aula chegar, foi quando eu e Lipe nos levantamos de nosso confortável espaço para ir embora.

          — Até ano que vem, saiba que não vou sentir sua falta. - Ele disse, fingindo indiferença.

          — Uhum, vai tomar no cu. - Respondi rindo e o abracei.

          Ele disse que não sentiria minha falta, mas seu abraço tinha um calor acolhedor e pedia para que eu ficasse, pedido que pude corresponder apenas por um momento. Aquele calor tímido e acolhedor deveria ter sido aproveitado por mais tempo.

          Aqueles abraços deveriam ter sido mais frequentes, aqueles sorrisos deveriam ter sido mais admirados, o calor de nossos braços e pernas encostados deveria ser sentido mais vezes e sem distrações. Aquele beijo...

          Deveriam ter sido mais, muito mais beijos.

          O último dia não foi uma despedida, mas fui embora de verdade, nem eu mesma sabia que seria assim, se eu pudesse voltar atrás...

          Você teria sido meu namorado, ao menos por um momento, mesmo sabendo que no final já estávamos destinados a nos separar.

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⏰ Última atualização: Jan 09, 2021 ⏰

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