A partir daqui, eu não possuo nome. Permito que veja em mim a Rebeca, a Vitoria, a Clara, talvez a sua mãe, sua prima, sua amiga, me veja como ninguém ou como você. Mas preciso que você entenda cada palavra que direi e que milhares de pessoas vivem a minha história. Isso não é frecura ou bobagem.NO PRO
Algum dia de 2016
*Muitas pessoas sofrem com baixa estima. Sejam questões físicas ou emocionais, é cotidiano nos automenosprezar.*
Eu sempre me senti inferior, não gostava do meu cabelo, das minhas orelhas (já colei elas com super cola várias vezes por isso), me achava pequena demais. Não era boa o suficiente, nem na escola, nem na dança, nem em casa. Tinha tendencias depressivas mesmo que ninguém notasse, nem mesmo eu.
Nada era realmente interessante, mas eu amava dançar ballet. Minha mãe queria que eu fizesse um curso no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e que eu tentasse a prova. E eu? Ah, eu sabia que não iria passar. Mesmo assim, lá estava eu no curso de férias.
Posso dizer com toda certeza que meu primeiro contato com Vaganova e bailarinas de todos os estados do país foi ótimo. Foi um mês corrido e mal pude assimilar todas as informações. Mas lembro bem da ultima semana do curso.-Você é muito boa, só precisa secar uns quilos se quiser passar na prova do Eedmo.- disse o professor (atribua um nome bonito a ele) para uma menina da turma que aos meus olhos já era magra.
Como toda bailarina, eu sempre soube que era necessário estar mantendo o físico e comer coisas saúdaveis. Mas naquele momento meus 53 quilos pareceram extremamente prejudiciais.
No começo de 2017
Eu não passei na prova e uma coisa não saia da minha cabeça, eu precisava emagrecer. Me matriculei no curso do Teatro e no ballet da minha cidade. Eu dançaria todos os dias e me dedicaria ao máximo para tentar de novo.
Fui a nutricionista com a minha mãe. Expliquei minha situação sobre o ballet e então surgiu uma solução. Ela me passou um remédio que acelerava o metabolismo, meus olhos brilharam ao ver as pílulas verdes.-Coma 1000 calorias por dia, você emagrecerá - foi nesse dia que tudo de fato começou
Lembro de achar impossível contar calorias nos primeiros dias. Pesquisava sobre as calorias e os nutrientes de todos os alimentos. Em pouco tempo eu perdi 3 quilos. Estava feliz, mas estava achando o processo demorado.
*Duminua para 800 kcal, minha mente dizia, você pode pesquisar formas de comer menos e gastar mais calorias.*
Pesquisando entrei em blogs, chamados de Ana e Mia, lá achei várias dietas, exercícios e fotos de garotas magras. Eram anoréxicas, mas e eu? Eu não tinha transtorno alimentar, só estava usando as dietas delas.
Comecei a acordar meia hora mais cedo para me exercitar. Então 48 quilos, foi mais rápido. Então li sobre laxantes, vomitar não era uma opção. Criei um novo vício, media meus braços, pernas e cintura todos os dias com a fita métrica. Me pesava todos os dias e anotava tudo que comia.
Entrei num grupo virtual de garotas com T.A. (transtorno alimentar) e lá nós compartilhavamos dietas e fotos das nossas conquistas. Elas me apresentaram as punições, se você come então deve pagar, se exercite ou se corte se necessário. L.F. (Low food) de 500 kcal todos os dias.Meados de 2017
Um dia elas pediram fotos minhas, nunca me senti tão gorda, estava me comparando com elas. Vênus (apelido) me mandou fazer um N.F (no food) de 24 horas. Assim fiz, 45 quilos.
- Você está emagrecendo, estou gostando de ver.- ouvi o professor me elogiar pela primeira vez.
Meu estomago roncava alto. Tudo bem, eu posso aguentar isso. O jejum intermitente de 18 horas é ótimo. Mas querendo ou não eu estava obcecada. Faltava festas, e vivia a base de coca zero e café sem açúcar. Minha clávicula estava aparecendo mais e minhas coxas estavam visivelmente menores. Mas ainda não era suficiente. Era hora de comer menos, 200 kcal por dia e fazendo muitos exercícios.
Falsifiquei receitas e tomei remédios para obesidade.
Na escola, não prestava atenção, sempre fazendo cálculos e pensando em formas de emagrecer. Tinha compulsões e passava a noite acordada me exercitando, tomando laxantes ou vomitando. Estava sempre seguindo a regra.
Então num bom dia, eu tinha comido 170 kcal e estava feliz. No jantar meus pais compraram pizza. Eu iria negar mas tive uma ideia melhor. Mastiguei cada pedaço e cuspi num copo colorido, não imaginava que podia mentir tão bem que meus pais não notariam. Parece loucura pensar que fiz isso na cara deles e ninguém notou.
Exagerei nos laxantes e passei mal durante a semana de provas. Estava pálida e exausta. Tinha tonturas e não conseguia me concentrar, estava com 42 quilos. Durante as aulas de ballet eu ficava gelada, e minha visão escurecia. Quase desmaiei várias vezes e Ana me parabenizava pela minha força.
Eu havia personificado a voz na minha cabeça e ela mandava em mim. Tomava banhos frios mesmo amando a água morna, por que ela não acelera o metabolismo. Dormia 5 horas porque me exercitava de madrugada. Jantava chá verde. Mais laxantes e diuréticos, fita métrica, balança e mais números.-Ei, você não parece nada bem, aconteceu alguma coisa? Está tão magra...- professora de geografia, isso foi como um elogio para mim. Estou me tornando uma borboleta.
-Vigia sua filha, ela está magra demais, está comendo direito?- amiga da minha mãe, eu ainda me sentia gorda, fiz questão de falar pra ela o quanto eu era esperta o suficiente para ser magra sem ter um T.A.
Final de 2017 e inicio de 2018
Fiquei com anemia. Sem força de vontade para dançar. Minhas unhas pararam de crescer, meu cabelo começou a cair e fiquei 4 meses sem menstruar.
Então eu desmaiei.
Estava sozinha e tiveram que arrombar a porta da minha casa, acordei no hospital com minha mãe aos prantos. Então tudo foi por agua a baixo e descobriram o que eu fazia. Fiquei internada por um mês e precisei fazer um tratamento durante 6 meses.
Descidi abandonar a Ana.
*Para quem já passou ou passa por isso, nós sabemos que não é bem assim que funciona.*
Em dois meses eu engordei 16 quilos, foi assustador olhar no espelho e ver a Ana rindo das minhas novas estrias. Ela me apontou cada celulite como punição. Era isso que eu ganhava por sair do jogo dela.
-Que susto! O que aconteceu com você?- professor de ballet ao me ver pela primeira vez depois de ganhar peso. -Você engordou.
"Ana, querida, eu não aguento mais." Chorei na frente do professor e da minha turma. Eu era uma porca feia e gorda. Entrei num processo depressivo entre compulsões e N.Fs. Passei o ano de 2018 num terrível efeito sanfona e sem sair de casa direito. Me automutilei por engordar e comi mais escondido. Estava com 59 quilos, nunca tinha pesado tanto.
Parei a única coisa que eu amava fazer. Eu não aguentava me ver no espelho. Comecei a tomar antidepressivo. A Ana nem era mais o maior dos meus problemas, em agosto de 2018 eu, minha mãe e meu irmão saímos de casa por questões que ficarão para serem contadas algum dia.Recomeçamos, tinha dias bons, dias em que eu até gostava do meu corpo. Mas nos dias ruins, era melhor morrer do que ouvir a Ana zombar de mim. Tem sido um longo processo desde então.
2019
Eu não voltei a fazer ballet, mas também não parei de dançar. Estou pesando 56 quilos e não sei minhas medidas ou quantas calorias comi hoje. As vezes me pego nos antigos vícios, mas um passo de cada vez. A Ana ainda me tira o sono e me faz ter uma visão errada de mim mesma. Fico triste quando vejo as roupas que estavam largas não darem em mim, mas não fico mais com fome por isso.
Não posso negar que ainda sinto vontade de tomar laxantes e para ser sincera tomei uns 120 comprimidos desse no começo do ano (foram exatos 120 porque cada caixa vem com 60 e eu comprei duas). Eu gostaria de dizer que estou curada e que nada disso me afeta, mas estaria mentindo.
Sobre as minhas colegas virtuais, não tenho falado com elas. É um processo continuo de recuperação. Mas eu me recuso a perder esse jogo. Mesmo que eu quisesse contar tudo sobre a minha AnaMia não conseguiria.Se você conhece alguém que sofre de T.A. ou se você sofre, é difícil eu sei, mas você não está sozinho. A Ana não pode te controlar.
Por ultimo, somos perfeitamente imperfeitos e somos lindos assim.
Ah, e eu? Eu sigo por essa estrada, sou só mais uma aprendendo que devo me amar como sou.
Não é o nosso fim.
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Cheia Do Vazio
SaggisticaUma pessoa qualquer desabafando sobre algo que ninguém quer ouvir.