O andarilho

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A aparência do homem era coberta pelas manchas de sol, poeira das estradas e das matas, suas marcas de expressão também davam o ar da graça, completando seu rosto velho e cansado. O andarilho era alto e magro, sua pele era rugosa e marcava os ossos de sua caixa torácica, as pernas eram um pouco mais grossas do que o restante de seu corpo. Afinal, ele as usavam constantemente.
Em relação as suas roupas, bem... A única coisa que ele portava era sua cueca e uma calça que carregava histórias. Eram contos felizes, tristes e até medonhas.
E em cada momento um pedaço dessa calça foi arrancada, restando para ele apenas uma quantidade de tecido que chegava até dois dedos abaixo do joelho.
Seus pés estavam podres de tanto caminhar, o velho andava desde o solo mais puro até as estradas mais bem feitas. Acompanhando seu caminhar, haviam correntes que se arrastavam pelo chão conforme ele se arrastava. Era uma sincronia perfeita. Esses materiais constituído de metal caiam sobre o corpo do homem, se enrolavam na cintura e terminava indo de encontro ao chão. O que as correntes seguravam? Bem...
O andarilho tem enormes bagagens cheias de conhecimento, sentimentos e sensações. Tudo que as pessoas já fizeram uma vez na vida, ele também fez. Ele carregava o mundo nas costas, às vezes carregava até o mundo de outras pessoas, mesmo que por um instante e ele não se cansava ou pelo menos não demonstrava.
Como foi dito, o homem já estava com um acúmulo de primaveras e seu corpo já não aguentava mais tanto peso, porém ele continuava. Não havia outro objetivo a não ser andar para onde os olhos alcançam.
Ele não possuía amigos, amores, família... Estava sozinho e iria permanecer sozinho.
Até que...
Um jovem arrogante passou de carro, rente ao corpo fino do senhor andarilho. Aquele feito fez o rapaz se sentir mais confiante, se preencher com a sensação de que era melhor do que todo mundo. Já para o andarilho, aquela irresponsabilidade fez seu corpo ceder, caindo de joelhos no chão. A primeira parada depois de anos.
A atitude errada de terceiros de certa forma ajudou o homem a repensar por um segundo o que estava fazendo com o restante de sua vida. Seus longos braços haviam soltado as correntes, tais permitiram que o amontoado de malas em forma de um globo caísse perante ao acostamento e início da ponte.
Ele olhou para trás, assistindo todos os seus artefatos indo embora, seguindo o curso do vento. Seus pés estavam latejando, o que impediu de correr ou andar. Então ele engatinhou até a mala aberta, metendo as suas mãos feridas dentro do recipiente, segurando o que podia.
Alguns carros passavam ao seu lado, mas nenhum dava a ajuda que ele necessitava. Já não tendo o que fazer, o homem ficou observando os momentos que passou e por sorte, aquele era o baú da felicidade.
O conhecimento e memórias que ali estavam fizeram o homem recuar para fora da pista e chorar, suas lágrimas caiam na terra que dividia espaço com o asfalto. Sua mão esquerda também assolava o chão, com socos que liberavam sua ira e tristeza, pois o homem suplicava em sua mente para que aquelas lembranças voltassem novamente.
Obviamente o pedido dele não foi ouvido, mas outra coisa aconteceu.
De uma das árvores que fazia limite com a estrada, uma criatura de porte medio chamou o andarilho com um gesto. Por mais que o homem tenha percorrido o planeta, ele nunca viu coisa igual aquela e por sua curiosidade, deixou tudo para trás: as dores nos pés, as correntes e até mesmo suas bagagens.
A criatura adentrou a densa floresta e o andarilho a seguiu. Ela só parou quando chegou em uma clareira, onde começava a nascente de um rio, o mesmo rio que passava por baixo da ponte onde ele deixou sua história.
Ele decidiu se aproximar dela, iniciando um contato físico e até emocional. Por mais que fosse algo surreal, ele estava encantado.
O ser provindo da natureza podia ser facilmente denominada como "mãe natureza", sua pele era verde como as folhas, seus olhos castanhos como a madeira, sua boca tinha a cor dos rios, seu cabelo era preto como a terra e seu corpo era coberto por pele animal.
O homem até sentia vergonha de si mesmo, por estar naquele estado. Mas a "mulher" não se incomodou, sorriu e pegou em sua mão, mostrando para ele o rio. O velho entendeu e foi até as águas, mergulhando seu corpo de uma vez só. A água era tão forte e intensa que levou todas as dores, sujeiras e feridas que possuía.
Ele saiu da água sendo uma outra pessoa, quase que milagrosamente.
Não parou por ali, a criatura também estava construindo uma grande casa naquele lugar e necessitava da ajuda dele. E foi neste ponto que a relação de trocas começou.
Ele precisava de cuidados físicos e mentais enquanto ela necessitava de atenção. Através de gestos e desenhos, colocava para fora os problemas que tinha. E eram muitos.
O homem pouco a pouco foi resolvendo os problemas dela, sem deixar de construir a casa. Os dois trabalhavam em conjunto para construir algo maior. Era uma obra tão incrível que encheu o peito do homem com a sensação de realização e gratidão. A felicidade estava no ápice e até um romance se instalava.
O entrosamento era tão grande que rapidamente algo a mais nasceu dos dois, era mais que uma simples relação. Era A relação.
O homem agora estava sem desejos, pois encontrou tudo o que precisava em um lugar só. Aquele ser provindo da natureza passou a ser o seu mundo, tomando lugar daquela bagagem velha que ele carregava nas costas.
Mas havia um problema, a realidade é egoísta demais para deixar que criaturas boas tenham sucesso. Na calada da noite, ela agiu, invadiu o quarto dos dois e plantou uma dúvida na cabeça da mãe natureza. Ela era um animal, não possuía pensamentos concretos, não sabia falar a língua humana e tão pouco gostava deles. Então por que ela estava ali? Abraçada a outra criatura atípica, iniciando uma vida "moderna".
Foram essas dúvidas que percorreram na cabeça da musa ao acordar e olhar para o homem. Assustada com a situação em que se encontrava, ela o empurrou da cama e se levantou. Parecia diferente daquela criatura que tanto ajudou o homem.
Ela fazia gestos para que ele não se aproximasse, pois iria machucá-lo se fizesse tal ato. Outros gestos também foram feitos por ela e o homem conhecendo ela, entendeu do que se tratava e respeitou, não se aproximou. Mas quando ela foi embora, ele correu atrás ao pensar que não podia desistir tão fácil. Logo agora que ele tinha o mundo nas mãos e não nas costas, logo agora que a dor que sentia foi trocado por amor e gratidão?!
E uma corrida foi iniciada, ela corria por medo de não se adaptar aquilo e se prender a algo estranho e ele por querer ter um objetivo a não ser andar até a sua morte.
Ela não era tão rápida, mas conseguiu se afastar quando as dores do passado afetaram o homem, que caiu no chão. Ambos ficaram longe o suficiente para que as lembranças fossem cortadas. E a realidade entrou em ação novamente, resgatando as malas do ex andarilho e colocando na varanda da casa. Dentro também possuíam planos e atitudes que o homem poderia ter tomado sozinho para melhorar a sua vida se não tivesse ocupado com a criatura da natureza. Essa peça também foi empregada pela ardilosa realidade, que deixou o homem possesso. O que era felicidade agora tinha se transformado em indignação e repúdio. As noites do homem agora eram acompanhadas de raiva, solidão e hipóteses que talvez não dariam certo.
Mas ainda havia solução para tudo aquilo, pelo menos era o que o homem solitário pensava. Ele com alguns meios chamou a realidade para conversar...
Enquanto o monstro não chegava, o ex andarilho olhava e pensava no que fez e conquistou. Um suspiro longo e profundo foi dando por ele, servindo de trilha sonora para seus pensamentos. Ele agora estava assimilando as memórias do passado e as do "presente". Tudo que podia sentir era gratidão por ter conhecido aquela criatura, por ela ter ajudado a acabar com aquela vida miserável e sem futuro, de tirar das costas dele o peso do mundo, das dores, das infelicidades e substituir tudo isso com momentos únicos que sabe que não terá com mais ninguém. Ele reforçava essa última parte em sua cabeça, pois tinha conhecimento demais para fazer essa afirmação. Mas talvez nem se tratasse de conhecimento e sim outra categoria.
Depois de colocar todo o ar para fora de seus pulmões, ele olhou para a janela e viu a realidade na varanda, fazendo gestos e tentando ser silenciosa. O homem saiu para ver o motivo do comportamento anormal daquele ser e viu ao fundo a criatura observando a casa e principalmente ele.
Era uma mania que ela passou a ter para saber como o seu ex companheiro estava. Ele repreendeu a realidade e voltou a olhar para a mulher, seus olhos estavam lacrimejando quando soltou um sorriso e fez um gesto para ela, dizendo da sua maneira "Obrigado!".
O ex andarilho limpou os olhos com a blusa e olhou para a grotesca sombra ao seu lado. A realidade já sabia do que se tratava, ele queria ter sua vida de volta. Não a vida de andarilho, mas a vida que ele havia erroneamente deixado para trás para correr atrás de um falso objetivo.
A grande imagem segurou a mão do homem e desapareceu, colocando o homem de volta para o lugar que ele não deveria ter saído. Sua cabeça agora estava diferente, possuía novos planos, atitudes, conhecimento, lembranças do primeiro amor e gratidão. Ao qual ele distribuiu sobre a sua família e amigos por estar finalmente em casa.

Pensamentos e sentimentos não tão lúcidosOnde histórias criam vida. Descubra agora