4. Hoje Não

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[Para melhor compreensão da história, recomendo a música Cygnet Commitee, do David Bowie.]

Um rápido preâmbulo

Considerando, que em todos os meus vinte e três anos eu só fui a praia uma vez, quando era bebê,

Considerando, que todos meus heróis morram após os 25 e ainda me faltam três anos,

Considerando, que nunca terminei de ler os livros que escrevi naquela lista que perdi entre os escombros do meu quarto e que se fosse ler de novo meus favoritos teria que viver no mínimo mais um ano,

Considerando, que nunca disse ao meu irmão que o amava e que ele sempre foi o melhor de todos nós,

Considerando, que a humanidade ainda vai produzir músicas que preciso ouvir,

Considerando, que gostaria de ter amado com muito mais intensidade do que jamais cheguei a sentir,

Considerando, que não deixaria pra trás nada que valesse nem uma nota de rodapé em um jornal de quinta,

Considerando, que a única coisa que eu gostava na faculdade era o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e que nele me inspiro,

Considerando, que meus preâmbulos não fazem sentido quando os repito na minha cabeça, várias vezes, em busca de algum sentido para as coisas que faço,

Eu, Leandro Azevedo Lima

declaro

que não quero morrer.

Uma história de como eu morri

Foi André quem me deu os tênis que eu segurava pela ponta do cadarço, acima da água que passava por cima da ponte. Era um tênis azul-claro, que eu adorava ver parado no chão do quarto dele e que ele nunca usava, até que eventualmente peguei pra mim.

Pensei em jogar o tênis antes, e depois eu. Pra ver qual de nós sobreviveria a queda. Provavelmente eu, o que não era a intenção. Me conhecendo, meu corpo se recusaria a morrer antes do tempo. Mesmo que não houvesse mais nenhum.

Acabo colocando o tênis de volta, e me sento no acostamento, de costas para a borda da ponte. Tiro do bolso o papel dobrado em quatro que trouxe, com meu preâmbulo. Era o primeiro dos que eu redigia na minha cabeça que eu decidia passar para o papel. Devia tê-lo deixado na casa de André, mas como fazer isso sem que ele ou alguém da família soubesse que eu estivera lá? Eu provavelmente teria conseguido pular o muro, mas não queria ter que cometer invasão de domicilio para entregar meu bilhete suicida. E não queria pular da ponte sem que ele soubesse.

Mas, penso enquanto boto novamente o bilhete em meu bolso e me viro para a ponte, que espécie de bilhete suicida termina com "não quero morrer"? Mas sei que não poderia ter escrito de outro jeito. Não quero morrer. E minha cabeça sabe disso, porque continua repetindo a voz de David Bowie em Cygnet Commitee, oh we want to live, live, live. Sei disso, sei disso.

Por que escrevi aquilo? O papel arde no meu bolso. Não sei dizer. Ultimamente, tenho aceitado cada vez mais que não sei a maioria das coisas. Sinto que todo mundo precisa ter tanta certeza de tudo o tempo tudo que quando admito que não sei das coisas, me sinto aliviado e me sinto como se nadasse contra a corrente. É perigoso viver assim, sem ter certeza de nada. Como se eu tivesse na beirada de uma ponte.

And we know the flag of love is from above / and we can force you to be free / and we can force you to believe.

Minha cabeça dói pelo barulho insistente da música que ecoa na minha cabeça vazia, que é oficina do diabo. Tiro as duas mãos da borda da ponte como se tivesse começado a pegar fogo.

BABY - E outros contosOnde histórias criam vida. Descubra agora