Verão
Junho
- 1890TINHA UM RAPAZ MORTO NO lugar em que Liev dormia. Sangue nas paredes, sangue no chão e no lençol que uma vez, há muito tempo, havia sido branco e agora possuía um tom escuro muito suspeito. Estremeceu. Odiava carmesim e o odor metálico do sangue era nauseante. Apertando a maçã meio mastigada que roubara contra o peito, deu um passo para mais perto do corpo. O beco estreito não seria nada a partir daquele momento, senão um ponto de encontro para a polícia e local de despacho para mais um homem morto.
Estava acontecendo muito daquilo nos últimos meses. Jovens garotos sendo encontrados mortos nos becos de Sandhill. Fardados, rostos desfigurados. Liev não era nenhuma detetive ou mesmo médium para saber que as coisas estavam ficando sérias. A única coisa que não entendia, porém, era do porquê as mortes não irem a público e, mais ainda, não conseguia entender o motivo dos corpos sempre a encontrarem.
O rapaz que decidiu ocupar seu quarto atual era comum para os padrões da cidade. Alto e branco. Se seus olhos estivessem abertos, Liev sabia que iria se deparar com um par de íris azul a observando. Num misto de nojo e curiosidade, largou a maçã no chão e abaixou-se, encarando o emblema militar costurado em seu uniforme. Liev não pôde evitar o pensamento de que talvez aquela fosse sua oportunidade para levar dinheiro de maneira fácil. Talvez até algo mais.
Estendeu a mão, mas hesitou. Não parecia certo roubar de um morto. Parecia trapaça, pensou, e quase riu do seu senso de honra deturpado. Mordiscando os lábios, encarou o rosto jovem desfigurado e seu estômago deu voltas com a visão decadente. Porque tantos mortos? O que esses garotos fizeram? Quantas pessoas inocentes será que ainda iriam matar? Dilacerar? Observando o corpo frio, foi fácil imaginar alguém sobre ele, apontando uma arma na direção do seu rosto pálido.
Eram tempos como aqueles que a deixavam inquieta. O ápice das guerras, das mudanças. Ser cercada por pessoas mortas era algo tão agonizante..., mas não pelos motivos usuais.
Esquecendo a ideia de certo ou errado, esticou os braços e enfiou as mãos nos bolsos da farda. Alguém gritou. Puxando os membros de volta, levou-os ao peito e sentiu o coração bater descontrolado na ponta dos dedos. De olhos arregalados, virou a cabeça e inclinou o corpo para o lado, onde viu um homem cair sentado no chão, muito próximo da estreita entrada, mas muito longe para que Liev pudesse analisar seus traços. No entanto isso foi o suficiente para enviar sinais de alarme por todo seu cérebro. Não se mexeu quando ele riu por um momento, antes de voltar a ficar em pé com dificuldade. E continuou parada quando algumas mulheres passaram rindo. Saias curtas e corpetes apertados abraçavam seus corpos. Nenhum deles olhou para o beco ensanguentado. Ela relaxou. Quando o homem bêbado desapareceu do seu campo de visão, sua atenção retornou ao homem morto.
Com mais cuidado, levou uma das mãos ao bolso esquerdo e apalpou o mais rápido que pôde. A única coisa que encontrou nele foi a foto de uma garota rechonchuda e muito bonita. Lábios, olhos e rosto sorridente. Ela gritava vida. Liev, no entanto, duvidava que essa seria sua aparência quando recebesse a notícia de que este rapaz não estava mais entre os vivos. Quase podia ver a foto em suas mãos mudar de expressão. Estremeceu e devolveu a fotografia.
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Tsirk Croway Lune - Purgatório
ParanormalACROBACIAS, MORTE & CAOS. Estamos em 1890. Sozinha e sem ter para onde ir, Anne-Liev Vionnet vaga pelas ruas da Inglaterra após fugir de um Sanatório e deixar sua antiga vida na França. É assim que acaba encontrando o Croway Lune - um circo de ren...