Parte II - Os Corpos

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Londres, 20 de junho de 2073, 23h46

Muitas pessoas perguntavam de onde vinha a minha inspiração para os livros mais vendidos dos últimos anos, entretanto, nunca acreditei ser o merecedor do sucesso. Sim, as palavras eram escritas por mim, porém toda a magia vinha da mulher parada na calçada, os olhos atentos voltados para o corpo gelado e jogado ao chão.

- Rayner, quero a imagem de todas as câmeras de segurança da região. - Katherine Blackwillow me disse e então se virou para um dos policiais ali presentes: - Por que não fui chamada assim que o crime ocorreu? O corpo claramente foi mexido por Scanners. Sabe que odeio quando esses malditos robôs analisam a cena antes de mim!

- Não pudemos contatá-la mais cedo. - O policial Thompson respondeu. - Precisávamos mapear o crime e reportá-lo.

Observei enquanto ela bufava e prendia o cabelo curto atrás das orelhas antes de se abaixar ao lado do corpo. Enquanto meus dedos automaticamente deslizavam pelo tablet, buscando as imagens das câmeras, as Características da mulher morta apareceram na tela, enviadas pelos Scanners.

- Ela se chamava Lillie Dash, 24 anos, cientista especializada em humanização robótica e zeptociência. - Li. - Nenhum relacionamento amoroso, sem parentes vivos ou robôs familiares cadastrados no sistema.

- Ela estuda robôs, mas não tem um em casa. Irônico. - Kathe resmungou, afastando a franja loira da morta para analisar o pequeno buraco no meio da testa. O furo era tão pequeno que pouco sangue havia vazado, formando apenas uma pequena linha vermelha que descia pela ponta do nariz e pingava ao chão. - Bala eletromagnética. Terei a confirmação ao abrir o corpo, mas é meu melhor palpite.

- As mesmas que foram proibidas ano passado? - Perguntei.

- Sim. Apenas policiais podem usar esse tipo de munição. - Tomou o tablet da minha mão, com toda a delicadeza que ela não tinha. - O tiro definitivamente foi humano, pois não foi bem centralizado. A lista de policiais humanos que não estavam em serviços é pequena, então quero que descubra onde cada um deles estava na hora do crime. Vamos levar o corpo e abrir ele.

Kathe se afastou, andando de volta até sua moto, parada ali perto. Vi quando o corpo foi levantado por dois robôs, embrulhado em um material preto e levado embora velozmente. Os demais policiais reabriram a passagem de pedestres pela calçada.

- Quer um café antes de irmos? - Perguntei a ela, que já estava montada na moto.

- Você sabe como melhorar meu humor. - Ela sorriu e estendeu o capacete para mim.

Coloquei o capacete e sentei atrás dela, rodeando meus braços em sua cintura. Aceleramos pelas avenidas movimentadas de autômatos e outros poucos veículos dirigidos por pessoas, as milhares de luzes brilhando pelo vidro. Repentinamente, a tela do capacete vibra, anunciando uma chamada da Estação de Polícia. Pisquei os olhos para aceitar a chamada.

- Rayner Smith.

- Thompson. Precisamos que Blackwillow venha imediatamente, outro corpo foi encontrado. Estou enviando a localização.

- Estaremos lá. - A chamada se encerrou e enviei a localização GPS para o visor de Kathe, que bufou, mas virou na longa avenida em direção à London Bridge. Nosso café tinha ficado para depois.

••••

Londres, 21 de junho de 2073, 00h27

Estávamos na margem do rio Tâmisa, a água gelada não muito longe de nossas botas, aguardando os dois robôs aquáticos retirarem o corpo da água. Franzi o cenho pela coincidência: outra mulher, usando apenas um vestido leve e branco, o cabelo loiro e molhado colado sobre seu rosto.

O corpo foi pousado no chão de pedras e nós nos aproximamos. Meus olhos se arregalaram pelo choque de me deparar com o mesmo rosto de pouco antes, exatamente as mesmas feições do corpo encontrado com o tiro na testa. Era raro ver Katherine surpresa, porém, quando se abaixou para analisar a morta, vi seu cenho franzido em espanto.

- Impossível. - Resmungou Thompson.

- Análise, Rayner.

Passei o tablet próximo ao corpo e permiti que o aparelho fizesse a análise. Em poucos segundos, as Características se abriram e, ainda mais chocado que antes, virei a tela para Katherine.

- Lillie Dash, 24 anos. - Ela leu. - Como podem haver duas pessoas para as mesmas Características?

- Irmãs gêmeas? - Sugeri. - Isso explicaria a identidade do DNA.

- Cada uma teria sua ficha nas Características. - Kathe passou a mão pelos cabelos, nervosa.

Ela teclou no tablet e então estávamos conectados com as câmeras de segurança sobre a London Bridge. Voltando um pouco nas imagens, vimos Lillie Dash - uma delas, pelo menos - caminhar descalça até o meio da alta ponte. A reforma de 12 anos antes havia tornado a London Bridge uma das mais altas pontes do mundo, então, para evitar acidentes e suicídios, uma barreira invisível e eletromagnética fora instalada, entretanto, despreocupada com isso, a mulher loira passou por sobre as barreiras da ponte e, sem hesitação, se jogara em direção ao rio.

Katherine acessou o sistema interno da London Bridge, passando a lista de falhas do sistema protetivo de barreiras nos 12 anos em que fora instalado: havia apenas uma falha recente, quando o sistema foi reiniciado, deixando a ponte desprotegida por um minuto, no exato mesmo horário em que Lillie havia saltado.

Irritada, Kathe andou para longe, virando-se por apenas um instante e gritando para Thompson:

- Quero os corpos na minha sala agora!

Sangue e carbonoOnde histórias criam vida. Descubra agora