⏳. Não é amor quando dói

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"— Olhe dentro dos olhos dele, e ele te fará queimar viva." — Foi o que me alertaram. Mas quando escutei aquela voz pela primeira vez, não pude manter meus olhos fechados. Algum animal rugiu aqui dentro e não pôde ser domado. E então, no ato da maior teimosia e afronta comigo mesma, me virei e olhei. Olhei, encarei e queimei.

Queimei todos os poros da pele.

Ele era tão belo que Shakespeare choraria ao escrevê-lo. Suas lágrimas contornariam o corpo dele, fazendo frases, histórias e infinitas entrelinhas pra caber no coração de cada ser humano existente. O cabelo dele é tão macio, bonito e cheiroso, como algum óleo tropical. A pele dele era tão aveludada como um pêssego. Seus lábios eram bonitos de todos os jeitos: ressecados, mordidos, sorridos, parados, tensos, sérios, entreabertos, colados nos meus... Tantas formas para descrevê-los.

Uma vez as nuvens se alinharam no céu enquanto passeávamos, virando a esquina da quadra de casa. Seu casaco não tinha cor, mas seu corpo era o próprio arco-íris bem desenhado. As pontas dos meus dedos formigavam forte todas as vezes que ele soltava minha mão, e por um momento, me perguntei se ele merecia mesmo fazer mais parte em mim do que eu mesma.

Ele era parte em mim.

Mas eu não sou parte em mim.

Mas será mesmo que não somos uma parte só, tentando correr do elástico que bem nos amarra, e no final o elástico nos puxa de novo pra perto?

Ele não merece.

Ele não merece ser mais parte em mim.

Nem eu mereço.

Eu mereço ser parte completa. Mas como não sou, eu o permito aqui. O permito pra me fazer dele, eu o permito para deixar esse buraco que tem aqui dentro de mim um pouco mais cheio de vida.

Clima ambiente, 15 de junho, manhã de sábado.

Eu gosto de flores.

Flores fazem bem. Elas cheiram de uma forma maravilhosa e brilham como o sol. São coloridas e remetem à alegria. Mas é uma verdadeira pena elas terem que morrer.

Não sei se você alguma vez já ouviu falar dos deuses do Hinduísmo. Não quero pregar religião aqui, mas acompanhe comigo este raciocínio:

O Trimúrti compõe os três maiores deuses do Hinduísmo. Temos Brahma, que é o deus da criação. Temos também Vishnu, que é o deus que conserva as coisas. E por último temos Shiva, que é o deus da destruição. Por muitos olhos, se compararmos Shiva com outros deuses, ele parece ser alguém mal porque destrói as coisas. Mas seguindo de que tudo o que se é criado, conservado e quebrado, pode vir a ser criado novamente de uma forma ainda mais bela, Shiva me parece mais um deus que dá uma oportunidade das flores (e outros) nascerem ainda mais belos.

Se eu pudesse pedir algo para ele, pediria para que ele quebrasse meu coração ainda mais. Destruísse todas as partes dele. Para no fim meu coração voltar batendo, mas não sofrer e nem mentir mais.

Então, por favor Shiva, destrua meu coração.

— Já se passaram duas músicas, Ágape. — A voz dele invadiu o quarto, mas continuei deitada encarando o teto. — Já se passaram oito minutos e quarenta e quatro segundos. Estamos atrasados.

— Não quero ir hoje, Kim. — Ele me encarou.

— Mas meu anjo, você nunca perde suas aulas de teatro. Você ama atuar.

— Eu amo atuar. — Concordei — Mas dói.

Dói? — O lado oposto do colchão se afundou, e quando o cheiro de seu perfume me invadiu, tirei os olhos do teto branco para encará-lo de vez.

Cronofobia • knjOnde histórias criam vida. Descubra agora