Rio de Janeiro, 1.855
Elza sentiu medo naquela noite, assim como havia sentido em todas as outras.
O povo era louco e bastava um erro, então seria ela a gritar em meio às chamas.
A pequena multidão formada pelos moradores do cortiço e adjacências se reuniu ali naquela noite para ver a fogueira arder. O julgamento e sentença era apenas deles, pois temiam que os homens do imperador considerassem a bruxaria incompatível com a cidade imperial e destruíssem o cortiço como fizeram com os demais cortiços do Rio de Janeiro.
— Levanta os olhos e olha, Elza. – Disse a poderosa voz, desprovida de emoção. – Veja o que o povo tem que fazer ao capturar uma bruxa.
Era José Maria, tio de Elza, quem falava.
As demais pessoas que compunham a roda em volta da fogueira procuram Elza com os olhos, provocando-a a continuar assistindo. Era um grupo de gente iletrada e humilde. Meretrizes, engraxates, cocheiros, leiteiros, estivadores, carregadores – eram apenas a ralé, na visão dos abastados.
Com medo do julgamento dos ricos, o poviléu havia decidido agir por conta própria.
Ocorre que estranhas cantorias e cheiros espalhavam-se pelo cortiço, fazendo leite azedar, as galinhas deitarem ovos estragados e mesmo a Lua ficou escondida no céu uma noite inteira. Mas gota d'água foi o mau olhado sobre Sebastiãozinho, filho da dançarina Babete, que caiu de cama e morreu dois dias depois.
No seu leito de morte encontraram Das Dores, velha parteira, rezando uma prece negra. Ela dizia que era uma ladainha para encomendar a alma do menino que morreu anjo, mas todos sabiam que era bruxaria.
Ela foi dominada e amarrada, e agora gritava em meio às chamas que consumiam suas roupas, sua carne e sua alma.
— Estou com medo. – Disse a menina, afundando o rosto no ombro do rapaz.
A menina de treze anos era Henrieta, e o rapaz que lhe emprestou o ombro era Roberto, seu irmão. O engraxate Roberto viu que os furiosos olhos de Zé Maria caíram sobre ele. Era ordem de Zé Maria que todos estivessem na fogueira porque queria saber se alguém ia se condoer da bruxa.
Mas foi Elza quem enjoou com o cheiro de carne queimada e vomitou. Roberto agachou ao lado dela e ergueu seus cabelos antes que sujassem na poça de sujeira.
— Mulheres são fracas. – Observa José Maria cuspindo de lado um escarro negro típico de quem mascava fumo – Eu fico feliz de ver a maldita bruxa queimando até os ossos.
A fogueira ardeu noite adentro.
Vieram homens do Paço ver o que se passava.
Foram deixados homens do cortiço de prontidão para dizer que apenas defumavam carne para vender no mercado.
Roberto acordou no dia seguinte e já ia caminhar para a rua do Ouvidor procurar clientes para engraxar, quando ouviu um grito agudo que cortou seu coração.
Correu desesperado para o pátio do cortiço, vendo sua irmã Henrieta, Babete e outras mulheres apoiando Elza, que gritava e apontava para o chão.
Arrumado com as asas abertas, um ensanguentado pombo morto foi posicionado na porta da latrina. Ele foi aberto, estufado com alguma mistura e grosseiramente costurado.
— Bruxaria. – Cuspiu Zé Maria, já vestido com sua farda de cocheiro e pronto para sair à labuta. Depois de cuspir, enxuga o canto da boca com as mangas da camisa, olhando lentamente nos olhos de cada um dos presentes que vieram assistir à macabra cena – Matamos a bruxa errada, ou havia mais de uma. Eu vou queimar a maldita bruxa. – Promete ele, olhando para as mulheres e moças.
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Sangue Negro
HorrorNa cidade imperial de São Sebastião do Rio de Janeiro, no ano de Nosso Senhor de 1.855, coisas realmente estranhas acontecem no cortiço condenado. Roberto, Elza, Henrieta, José Maria e os demais habitantes do cortiço se vêem às voltas com acontecime...