Motirô (n.) Construir algo juntos, ajudar o outro.
Talvez, fosse pela semelhança, pela coincidência, talvez por acaso, mas a história de Pedro muito se parecia com a de Leone. Muito provavelmente por isso tenha ocorrido uma ligação instantânea, ou talvez, fosse mesmo aquela coisa do destino que todo mundo diz, era pra ser.
Já eram mais de meia noite quanto ouvia seu amigo murmurar sentimentalidades do outro lado da linha. Aquela mesma história de querer fugir de si mesmo, da sua vida e das lembranças.
Assim como ele, era precoce demais para sua idade e logo, as dúvidas começaram a lhe assombrar. E isso cabia ao modo de vida que vivia desde que se entendia como pessoa. Seus sentimentos tão semelhantes aos das maiorias das crianças que viviam com ela naquele sistema. Suas perguntas não eram respondidas com a mesma entonação que eram perguntadas, seus medos eram maiores do que o mundo pequeno que habitava.
Enquanto o tempo passava, ela podia compreender melhor o que acontecia ao redor de si mesma; quando finalmente entendeu que aquela era ela, aquele lugar era dela e que aquelas crianças eram sua família, mais dúvidas passaram a atormentá-la. Eram tantas perguntas e ninguém pra responder uma sequer. Pessoas entravam e saiam daquele lugar buscando conexão com alguém que fora reservado pelo destino para fazer parte da família; aquilo a assustava. Precisava ser escolhida por uma pessoa para que pudesse ter uma vida normal. Por que? Ela entendia que haviam meninas e meninos da sua idade fora dali que tinham família, mãe, pai e irmãos; não ela.
Leone não tinha ninguém desde que se lembrava. Não sabe dizer se alguma vez alguém sorriu quando disse a primeira palavra, se teve alguém para segurá-la quando deu o primeiro passinho desajeitado ou como é o rosto da pessoa que a colocou pra dormir incontáveis dias; talvez uma daquelas funcionárias do sistema de adoção; talvez sua própria mãe antes de abandona-la naquele lugar.
Então apareceu Ana. Aquela mulher que, muito provavelmente, fora escolhida a dedo para que representasse sua figura materna. Tirou seus medos, suas dúvidas, a ensinou acreditar na melhoria de coisas que pareciam não ter caminho de melhora. Quando Ana Carolina chegou para ela, todos os textos filosóficos sobre a mansidão de um carinho se transformaram em metáfora porque ela materializava em Leone a sensação de que alguém poderia gostar dela sem necessidades de exigência.
Como amor fraternal à primeira vista. Quando tudo pareceu rude e triste, Ana fez com que o inverno se vestisse de verão, trazendo alegria pra uma criança que nunca conheceu o significado da palavra. Mostrou em tão pouco tempo que não poderia mesmo exigir amor das pessoas que passavam por ali, porque ela fora escolhida somente para Ana. Chegou e enfatizou sua falta de credibilidade em Deus, mas a fez entender que crer ou não, é só um detalhe para quem acredita na vida. Ana chegou e ela já não sentia mais raiva do mundo. Prometeu que lhe daria um lar e amor, que lhe reconstruiria. Abraçou seus medos, seu corpinho de no máximo seis anos tão frígido e suas vontades de fuga.
Ana não lhe trouxe só o carinho de uma mãe, trouxe sorte, trouxe afago na alma e amor que entope as artérias.
Aquele suspiro cansado que saiu de sua boca demonstrou todo sentimento que carrega dentro do peito. Se não fosse pela voz de Pedro lhe chamando, talvez ficasse ali por mais tempo, pensando nas coisas boas que sua mãe havia trazido para sua vida.
— Estou aqui – respondeu, ajeitando sua posição sobre a cama.
— Odeio quando cê fica nesse trem de ficar pensando e me deixa falando sozinho – o sotaque mineiro e a forma como falou a fez sorrir. — Cê já tá estudando por aí pelo Rio? Tá gostando?
— Ah, não sei, ainda tá cedo pra eu dizer, viu? – Leone passou a mão pelos cabelos e se virou para deitar de bruços. — Mas semana que vem tenho uma prova. Vou estudar num tal de Pedro II. A mãe disse que eu tinha que estudar em colégio federal – rolou os olhos. — E aí você sabe, né? Mas eu nem estudei pra essa prova. Só tô indo fazer esperando a sorte cair do céu.

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Tre
FanfictionApós um desastre pessoal causado pelo consumo constante de álcool, Chiara Civello começa a erguer seus muros e voltar para sua vida artística depois de sóbria. Enquanto faz de tudo para esquecer seu passado capcioso, aquele onde amar não fora sua me...