Sehnsucht (s.) do alemão: a "saudade inconsolável" vinda do coração por "não sabemos o quê".
O despertador de Ana Carolina esgoelava-se estridente em sua cabeceira. Mas, ela já havia acordado horas antes que ele pudesse desperta-la. A luz do dia entrava tímida pela fresta da pesada cortina de linho azul marinho e insistia em morar em cima das costas da cama de Ana, cegando-a todos os dias pela manhã; o feixe serpenteava e espiralava, relevando pequenas partículas de poeira do ambiente. Sabia que em breve teria de mudar a posição dos móveis do quarto antes que enlouquecesse de vez, mas não hoje. Não neste dia. Estava se sentindo extremamente cansada, apesar de ter dormido cedo na noite anterior. Havia tido um sonho que minou suas energias.
Sonho esse tão vívido que possuía cheiro e sensações. Se fechasse os olhos, podia reviver cada uma delas para seu assombro. Ana vira seu pai em sonho, sonhos estes pouco frequentes mas sempre exaustivos de tão verossímil que eram. E por mais que estivesse morto há mais de trinta anos, no momento em que o véu da consciência é rasgado pelo sono, ele estava vivo como nunca.
Embora nunca aparentava estar bem, sempre curvado indicando estar cansado, o homem sempre lhe fora gentil e compreensivo sobre quem Ana havia se tornado. Mesmo nunca sequer tendo a segurado nos braços.
E a pior parte do sonho era se despedir e morrer de saudades daquilo que nunca teve.
Ana sentou-se na cama, afastando os cabelos do rosto e esfregando as mãos na fronte; só de sentir o peso de seu corpo, ela já sabia que seria mais um daqueles dias onde "dia e noite" seriam só mais um movimento gravitacional sem distinção. Vazio. Dia onde vento e brisa é a mesma coisa. Onde chuva e orvalho se misturariam dentro de si, afinal o sol que fazia do lado de fora racharia qualquer pele.Aquele dia que sempre acontece, onde nada é caracterizado como importante porque de súbito tudo perde o seu valor. E definitivamente Ana não queria viver aquele dia.
O que sentia era algo semelhante ao luto. Mesmo que ninguém tenha morrido. Sentia uma vontade de chorar por algo que não perdeu, afinal não se pode perder aquilo que nunca teve. Mas não conseguia.A lágrima mais pesada é aquela que não cai.
E Ana não sabia como contornar esse sentimento de uma maneira satisfatória o suficiente para que ele não tornasse a lhe invadir dessa maneira. Era algo além de tudo e todos. Até dela mesma.
Ninguém foi até seu quarto acordá-la. Nem Frida, a gata de Leone ousou arranhar-lhe a porta; já sabiam que seria aquele dia.
Contra sua vontade, afastou os lençóis da cama e desligara o ar condicionado. Os pés foram direcionados ao chão e logo foram recolhidos para a borda da cama quando os dedos mornos encontraram a friagem do assoalho ao tatearem-no.Por fim, levantou-se na mais completa penumbra e seguira para o banheiro. Longos minutos depois de um banho frio interminável para realinhar os sentidos, penteou-se brevemente e se vestiu como de costume.
Podia ouvir uma breve conversa entre sua filha e sua mãe no corredor enquanto terminava de vestir sua blusa de manga.
— Oi, mãe. Bom dia — cumprimentou Leone — Como é que eu tô? Tô bem assim?! — perguntou saltando em sua frente, alisando o vestido florido de alcinhas — Não tá bom, né? Eu sabia que não deveria ter escolhi esse vestido, é horroroso! — disse tagarelando sem parar, sem que Ana pudesse formular uma resposta — Vovó acho que eu não vou mais!— Mas você nem deixou a mãe falar, Leo! — disse Ana segurando seus braços — Você tá linda filha, e sei que vai arrasar hoje.
Leone tinha uma audição em um projeto de música no Rio de Janeiro. Ela, junto de sua avó Cida procuravam há varias semanas desde que se mudaram por escolas de música para que a menina pudesse continuar a aprimorar suas habilidades. Desde pequena, quando Ana a trouxe, Leone apresentou um talento peculiar para a música. Sempre que a brasileira sentava para praticar ou apenas distrair-se a menina sempre a acompanhava.
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Tre
FanfictionApós um desastre pessoal causado pelo consumo constante de álcool, Chiara Civello começa a erguer seus muros e voltar para sua vida artística depois de sóbria. Enquanto faz de tudo para esquecer seu passado capcioso, aquele onde amar não fora sua me...