No início

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Miranda segurou a voz, mordeu a língua e num rasgão apertou-lhe a mão e o antebraço. Podia engoli-lo mas apenas tinha livres as mãos para o poderem tocar, na profundidade onde lhe queria chegar.
Samuel olhou-a como se os olhos de ambos fossem vitreos, sem fundo e nessa falta de limites tocaram o não corpo. O corpo deixava de existir, nesses momentos, ela assustava-se muito. Via-lhe o fundo e ofuscava-se.
Samuel, de regresso ao seu corpo. Subiu para a mota, já de capacete enfiado, acelerou a fundo e frustado, seguiu a menos de 120 km/h. Todos o ultrapassam na auto estrada, resta-lhe o caminho monótono da direita e o do último a chegar. Vence no meio do trânsito, entre os carros. Estaciona no interior do edifício e sobe direto no elevador. Eleva-se no semi fato e nas semi vestes formais.

Os ratos são assim, escrúpulosos com o dever de cumprir. No fim de tudo, são os ratos os reis da máfia. Envolvidos em jogos de esquemas e de muito dinheiro.
Não é o dinheiro que o seduz, é ter o filão dianteiro e jogar, jogar, jogar.

Miranda tem o dia todo por sua conta. Vai vaguear a cidade e ouvi-lo a cada 30minutos, ora por voz, ora por sms. Saber tudo que vai e vem no dia dele, dar-lhe cor e corpo e assentir a sua existência.
Em todos esses momentos ela é mais do que livre. Uma tal liberdade que a eleva da gravidade e a faz pairar no cosmos.
Durante a tarde, ele soou mais que muitas vezes no telemóvel. Estava assustado, tinha um crime em mãos. A braços com a ex-mulher em tribunal, as medidas de coação a fecharem-lhe a existência e o medo, a ameaça da privação de liberdade. Miranda, percebeu-o desesperado. Notou que o desespero dele não a tocou. Fria e lúcida, explicou-lhe como proceder, entoou cada passo e sequência de procedimentos. Ele organizou-se na execução e passados uns dias, viu negado o pedido de aumentar as medidas de coação pelas autoridades.
Ela sentiu que queria continuar a viajar e nessa noite disse-lhe: - apetece-me comida asiática.
Dito e feito. Ele levou-a a um belo e moderno restaurante de fusão asiática.
Naquela mesa tiveram prazer a dois, na boca estalaram sabores novos. Os dois partilharam a forte delicia e a sobra embriaguez do vinho branco. Deixou-a ser feliz junto dele. Separaram-se na ida para casa.
Ela foi de carro e ele de mota.
Como de costume, ele quis ir programar o roteiro de gps, ela barafustou e disse que não se deixaria comandar pela voz da máquina. Apagou aquela merda tecnológica e no semáforo de vidro aberto, meteu conversa com os rapazes do carro ao lado. Além de ir de olhos na estrada, ainda falou com outras gentes. Do resto não sei que contar.
Nessa época ela já tinha perdido a esperança de fazer amor a toda a hora e a qualquer momento. Sabia que ele apenas lhe reservava a cama e podem ter existido dias em que não fizeram amor. De todos os dias ela quis. Miranda tinha um forte desejo por ele e o que mais a excitava era a força que ele tinha quando o desejo tomava conta dele.
Essa força, levava-a por todo o lado.
Depois, ele rendia-se á insegurança e ao medo. E ela não o podia ter.
Nesses momentos, disse a si mesma: continuarei a amar-te; e dava-lhe carinho e amor por todo o rosto.

Os ratos são animais perfeitos. Nunca se fazem notar, laboram com mestria e quando se cruzam connosco numa fugida, já vão bem gordinhos e velozes.

As manhãs juntos podem começar com beijos, beijos imediatos e mãos urgentes no corpo. Entre os dois não existia coisa nenhuma, existia o que cada um achava que sentia e o que não construíram com isso. Nas manhãs podiam amar-se. E os corpos de ambos chegaram a dizer que sim.
Outras vezes, ela acordou sozinha, ele estava na cozinha. Ela arrastava-se despenteada e sonolenta até ele. Tomavam café e leite e Miranda reclamava a inexistência de pão. Apesar de Samuel ficar indiferente, o pão vinha ter com ela ou então ainda a dormir iam comer torradas na esplanada do café. Miranda tinha coisa nenhuma de querer e fazer.
Samuel tinha ocultos maus estares dentro dele, os do presente.
Foram para a serra passar o dia, na viagem ela sentiu e questionou em silencio: este homem, esta pessoa, não parece reduzida á humanidade? E prossegue muda, com os pensamentos em alvoroço: nele o banal cai mal, o simples passeio, o mar as plantas, a vida por si só, não combinam com ele.
Samuel parecia mais em tudo. Muito mais que a própria vida.
Beijos, abraços, mãos dadas, carícias várias, foi assim que Samuel mostrou-lhe como o corpo dele se expandia até ao dela e foi assim que a fez sentir-se querida e desejada.

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