Miranda e Samuel conheciam-se da vida toda. Cresceram a ver-se crescer um ao outro e mesmo antes de serem gente, já as famílias de ambos se uniram quando a morte veio.
Um e outro tinham em comum, a família tradicional com raízes muito ligadas á terra, ao rude e ás tradições. O tom moreno da pele, a estatura média, os cabelos pretos e os olhos azeitona.
A simplicidade de quem nada quer da vida e a sensação vazia e descolada de não pertencer a esta vida. O ímpeto de não saber adiar o prazer e o impulso que os move de forma intensa. O imediatismo do prazer e a busca da novidade, a necessidade do novo, da mudança, da surpresa.
Samuel apaixonou-se por Miranda aos 15 anos desta. Sentia que a miúda popular do liceu, bonita, extrovertida, social e cheia de conhecimentos e amizades. Essa menina adolescente o deslumbrava. Via nela muito do que queria para si próprio.
Samuel vivia orgulhoso do seu elevado intelectuo e de resto, vivia só e isolado. Apesar de ter muitos amigos todos os dias, nada partilhava com estes. Sentia que a sua vida, a vida de dentro, a vida do seu interior e sentimentos, em nada se parecia com a vida dos seus amigos. Pertencia a uma turma de rapazes que viviam de faltar á escola, de passar as tardes a beber cerveja e outros modos de álcool pelos cafés da cidade. No seu isolamento, escolhia a companhia dos livros e o sossego das mesas da biblioteca e a luz das paredes vitreas dessas salas. Aos 14 anos leu Henry Miller, embora ainda hoje não entenda de facto o trópico de câncer, nem o de capricornio. Frustrado por não conseguir falar de forma expontânea com ninguém, estava entre amigos em silêncio. Sentia-se invisível aos olhos de Miranda e das outras raparigas do liceu e sentia que não podia ser homem e rapaz para nenhuma delas. Queria ter a coragem de experimentar muitas coisas mas apenas na solidão e no seu isolamento descobria o seu corpo. Tinha muitas e várias fantasias, em todas elas era esmagado por sentir que nenhuma mulher desejavel e sensual o olharia com a ideia de uma possibilidade. Ficava fechado, nos cantos dos cafés e discotecas, encolhido a sentir que as mulheres bonitas eram para os outros, menos para si. Nunca conseguiu lutar pela conquista de uma mulher, jamais teve coragem para tal. Entretanto, começou a imaginar que talvez pudesse gostar antes de homens e efectivamente tinha um enorme foco nestes, olhava-os e admirava-os, chegava a querer ser como eles para chegar ás mulheres. No seu interior isto foi ficando confundido com a possibilidade de gostar de homens e talvez ser homossexual.
Uma possibilidade alvo de muita punição, auto-punição e recalcamento.Miranda cresceu como menina, ao longo de anos a fio deixou-se guiar por livros e manuais.
Tinha um conjunto de crenças rígidas que lhe serviam de bússola e lhe indicavam as coordenadas da vida.
Nesta lógica, longe de sentir, de se sentir em cada momento, levava-se pelo dever.
Vai disso, fez-se, em muitas coisas, uma menina como deve ser! E em tantas outras, uma menina em formato pseudo adulto e noutras ainda, uma criança sem espaço de expressão e por isso com bloqueios vários no seu crescer.
O primeiro deles, o mais significativo, ao nível do corpo, aconteceu aos 18 anos, 10 meses de amenorreia com consequências no corpo e no peso. Além deste aspecto, no qual o sentir lhe ia direto ao corpo, ao revês de se fazer emoção. Tinha imptos momentâneos e imediatos de descargas de energia, em formas mais ou menos primitivas. Sem pensar, sem ter noção do que sucedia, agia e fazia. Em quase todas as áreas da sua vida. Fazia e acontecia, isso dava-lhe uma falsa sensação tranquilidade, muito momentânea essa paz existia.
Numa ansiedade sôfrega e ingenua foi experiênciando a vida.
Com sonhos realizados e outros frustados. Samuel surgiu e com ele uma convergência de vontades mútuas:
- apenas temos o tempo que a vida nos dá, esse vamos dá-lo um ao outro. Além do tempo, temos as nossas vidas mais que imperfeitas, vamos partilhar também isso e estar no sofrimento um do outro e no apoio... por fim e acima de tudo, temo-nos um ao outro, com respeito e honestidade. Muito imperfeitos mas inteiros.
Foi esta ladainha, com esta forma de reza que teceram o rosário das suas vidas em conjunto.
Partiram, então unidos.
Em casa separadas, mas sempre juntos, quando possível.
E tinham os abraços fortes e continuos a marcarem-lhes os dias e as noites de sono inteiras. O olhar e falar sempre nos olhos. A presença continua e o estar, de um e de outro.
E a partilha das arribas do cabo espichel, das escarpas voltadas para o oceano atlântico e com essa partilha o medo que esvoaçou arriba abaixo, o medo que se libertou de Miranda e a conquista da liberdade mais funda. A liberdade interior.
Desancorada do medo, Miranda ousou ser e existir com Samuel, apenas com uma bússola, a do seu sentir e a da sua intuição.
Nessa bússola, quando estava com Samuel o Norte não existia, não existiam coordenadas. Existia um mundo em suspenso, a deixa-los ser apenas um com o outro.
No dia a dia, iam juntos para o trabalho, ele saia na baixa e ela seguia até ao hospital. Faziam as viagens de carro, sempre de mãos chegadas, pelo meio abraços de um só braço e muitos e muitos beijinhos.
Divertiam-se com a playlist, a música era do melhor mas Miranda nem sempre estava pelos ajustes... por vezes reclamava e Samuel, cheio de paciência, procurava que Miranda estivesse bem e dava-lhe em tudo o seu melhor.
Paravam para tomar café, sempre a intercalarem as mãos dadas com os abraços. Por vezes paravam, na rua e ali ficavam a beijarem-se apenas.
Qualquer transuente percebia que o amor ali era fresco, para Miranda o amor é apenas isto. Dar sem medida e partilhar sem fim.
Foi então que chegaram as provações do diabo a desafiarem todas as convicções instituidas.
Samuel teceu aos poucos o seu rosário, o seu livro de preces. Teceu-o para Miranda.
Rezava assim:
- eu preciso muito de ti, eu vivo cheio de medo, preciso que saibas que sou muito doente e tu vais decidir se queres continuar.
Miranda tinha diante dela um homem por quem se tinha apaixonado até à medula. Além de se apaixonar por ele passou a amá-lo, amar porque deixou que o mau o menos bom fizesse parte da relação e passou a aceitar que as partes diminuidas e incapazes dele tivessem existência entre ambos.
Assim, aceitou amar um homem que tinha a excitação e a ereçao perturbadas, apesar da intensidade do beijar, de a possuir de mãos, corpo e boca e língua; o sexo nem sempre se fazia de penetração e se fazia, rápido se desfazia. Este homem não tinha ritmo era desajeitado, era imprevisível e não tinha um padrão. Miranda amava tudo isso.
O que mais amou sempre foi ter amado o imperfeito e depois disso o amor não finda nunca, o amor entre ambos tornou-se eterno.
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No teu chão
RomancePor fora, um homem comum, desportista, com um emprego de sucesso. Por dentro, um abismo existencial com uma e outras mulheres. Os indícios de crime são averiguados na justiça, tudo o resto passa-se por aí, entre hospitais e consultórios psiquiátrico...